São Paulo, segunda-feira, 18 de agosto de 1997
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Deu até pra comer a sobremesa

GUSTAVO IOSCHPE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há momentos na vida em que certas coisas, até então obscuras, tornam-se subitamente claras. É assim quando você vê o primeiro filme pornô, e então todas aquelas dúvidas de como é aquele negócio de plantar uma sementinha na mamãe ficam esclarecidas (a não ser, é claro, que seja daqueles que envolvem animais: não confunda). São normalmente prosaicos, singelos os momentos em que as grandes dúvidas são resolvidas, assim como quando a maçã caiu na cabeça de Newton e todos os mistérios da gravidade foram solucionados. São momentos de revelação, sublimes.
Semana passada vivi um desses. Estava num restaurante. Se me perguntassem agora, não saberia dizer mesmo se era em São Paulo ou Nova York, porque na mesma rua tinha butiques Cartier, Versace etc., e na frente do restaurante tinha uma Ferrari, um Jaguar e umas quantas Mercedes. Pensei até que fosse sonho. Ia me beliscar. Nem precisou: um mendigo me deu um cutucão, pedindo uns trocados. Era São Paulo.
Entro no restaurante. O pé-direito devia ter uns dez metros. No chão, mármore. No caminho do salão, colunas de madeira maciça, junto da adega. Ao fundo, o painel envidraçado. O garçom se aproxima. Fala um pouco sobre as opções de vinho, comparando os de Bordeaux com os da Toscana. Fiquei com medo. Não podia ser verdade. Devia estar em Paris. Olhei para o garçom: era nordestino. Estava em São Paulo mesmo.
Alguns momentos depois, veio a revelação. Olhava o cardápio. Escolhi um prato. Então olhei para o preço: era mais do que eu ganhava escrevendo minhas crônicas. No começo, foi uma sensação meio chata pensar que o que o meu estômago banhado em ácido clorídrico e outras gosmas consumia em uma noite não valia o que o meu cérebro produzia depois de anos de leituras, aulas etc. Foi no momento seguinte que veio a síntese: aquilo era São Paulo.
Como gaúcho, a paulicéia sempre me foi uma incógnita. Como é que tantos extremos podem conviver em uma única cidade? Como é que as fábricas que produzem a maior parte da riqueza deste país podem ficar ao lado das favelas? Como é que podem circular tantos carros luxuosos com tantos assaltantes e mendigos a impedir-lhes o caminho? Como é que tantas dondocas podem conviver em suas casas com tantas empregadas? Era-me incompreensível. É verdade que o fascinante de São Paulo é a diversidade, mas tanta assim parecia algo intolerável.
Pois foi a costeleta de vitela do restaurante que me fez ver tudo claro.
As pessoas que comandam os destinos da cidade e do país não vivem mesmo em São Paulo. Vivem em outro mundo. Saem de suas casas ajardinadas, pegam seus bólidos com motorista, param em frente ao restaurante e são escoltadas por seus guarda-costas até lá dentro, onde o garçom discorre sobre as diferentes origens dos vinhos. Parece que se está mesmo em Nova York, Londres ou Paris.
As outras pessoas parecem também estar resignadas ao seu papel: o retirante nordestino dá a impressão de estar grato por ter sido resgatado da seca e ter aprendido aqui sobre vinhos e caviar e poder servir a quem comanda a metrópole.
Todos se encaixam, harmoniosamente. Quem ainda não conseguiu o carro, o motorista, o guarda-costas ou algumas das loiras jovens e bonitas que ganham muitas jóias para acompanhar os velhos-gordos-fumantes-de-charuto acredita que é só uma questão de esforço. Trabalhando mais, um dia chegam lá. Sem ficar querendo reverter as coisas ou chutando o balde como fariam gaúchos e cariocas, mas, sim, entrando no sistema e aceitando-o. Por isso me pareceu que São Paulo aparentemente dá certo.
Sempre tem, é verdade, um mendigo ou favelado inconveniente que estraga um pouco a vista. Nada que um bom vidro fumê ou uma grade alta não resolva.

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