São Paulo, terça-feira, 19 de agosto de 1997
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O editor que virou juiz

LUÍS NASSIF

Tem-se o episódio da morte de Galdino, incendiado pelos rapazes de Brasília.
Independentemente de todas as circunstâncias que cercaram o episódio, das agravantes e das atenuantes, suponha-se que o editor do "Jornal Nacional" (citado apenas por ser o veículo de maior abrangência e o que mais tem recorrido a esse tipo de expediente) decidisse reduzir o número de cenas que mostravam o corpo de Galdino e ampliar a cobertura sobre os matadores e suas famílias.
Mostraria jovens com vida pacata e normal até a loucura daquela noite. Mostraria pais de família normais, indefesos, arrebentados. Divulgaria que o pai de um dos rapazes é juiz com atuação importante pró-causa indígena.
Sem alterar uma vírgula dos fatos, sem nenhum elemento novo de prova, mesmo que os rapazes fossem eventualmente assassinos frios e cruéis, a mera mudança de enfoque na cobertura do "Jornal Nacional" seria suficiente para dirigir a opinião pública para o lado oposto.
Quando se pretende que a Justiça se curve ao "clamor das ruas", no fundo se está transferindo o papel de julgar do juiz para o editor do "Jornal Nacional". E o que pretende o editor? Fazer justiça? Analisar tecnicamente os fatos? Nada disso. A pauta -não apenas do "Jornal Nacional", mas da mídia em geral- tem o objetivo expresso de buscar o enfoque de maior repercussão. É seu trabalho.
Mesmo princípio
O que importa nesse episódio é que o jogo perverso que leva a buscar o linchamento dos matadores de Galdino é o mesmo princípio que está por detrás dos grandes erros recentes da imprensa, da Escola Base ao bar Bodega.
A propósito do bar Bodega, recebo carta de Fernando Moreira Gonçalves, promotor de Justiça de Jundiaí, narrando o que ocorreu no âmbito interno do próprio Ministério Público em função desse tal "clamor das ruas".
Diz ele: "Lendo sua coluna deste domingo, não pude deixar de me lembrar do caso Bodega, no qual sua manifestação de apoio ao promotor de Justiça Eduardo Araújo da Silva, num momento em que ele era questionado dentro do próprio Ministério Público, foi fundamental para a preservação da atuação independente daquele promotor". E, se alguém não tivesse remado contra a maré, o que seria dos rapazes que haviam virado alvo preferencial da turba?
O mesmo ocorreu no caso Escola Base. Segundo livro publicado sobre o assunto, o desembargador Bruno de Andrés só ganhou coragem para investir contra o malfadado "clamor das ruas" e libertar inocentes após minha manifestação, pela TV Bandeirantes e pela Folha. E se não tivesse sido rompido o pacto de unanimidade?
Continua o promotor:
"Em fatos de grande repercussão social, como os acima citados, existe uma grande tensão entre a segurança pública, que todos desejamos, e os direitos e garantias individuais das pessoas investigadas. Tenha a certeza de que sua atuação tem sido importantíssima para a construção de um Estado democrático de Direito em nosso país".
O que está em jogo não são os rapazes de Brasília ou o proprietário da Escola Base, mas princípios de direitos individuais que têm de ser seguidos, seja qual for o episódio, seja qual for o criminoso, se aspiramos, de fato, a nos tornar uma nação civilizada.
Qualidade e escândalo
Outro engano é supor que a busca do sensacionalismo barato é inerente ao exercício do moderno jornalismo.
Recentemente, Boni -o homem da TV Globo- proibiu cenas escabrosas nos seus programas populares.
Moralismo? Nada disso. Confiança no próprio taco, crença de que é possível manter a atenção do espectador sem baixar a qualidade.
O jornalista que decide pelo enfoque sensacionalista da matéria o faz pela incapacidade de buscar um enfoque original e de qualidade. É o casamento da intolerância com a incapacidade.
Ao sonegar dados que possam "humanizar" os acusados, sabe ele aquilatar as consequências de seus atos? Dá-se conta de que está revolvendo os sentimentos mais baixos da opinião pública, o lado mais tétrico dos leitores, esse impulso animalesco rumo ao linchamento que em nada diferencia linchadores de assassinos, leitores sôfregos por vingança (não por justiça) de integrantes de torcidas organizadas de clubes de futebol?
Pergunto: é essa a sociedade que buscamos? Decididamente, não é.
Projeto Folha
O novo projeto editorial da Folha -publicado neste domingo- representa o primeiro rompimento programático e oficializado contra esse estilo de jornalismo.

E-mail: lnassif@uol.com.br

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