São Paulo, quarta-feira, 20 de agosto de 1997
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Queremos culpados e punições exemplares

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O documentário francês sobre a vida dos insetos, "Microcosmos", em cartaz no Espaço Unibanco 2, mostra várias cenas memoráveis. Cito uma.
É tempo de seca. A câmera mostra uma centopéia se arrastando pelo chão escaldante. Outra centopéia está grudada atrás da primeira. Forma-se uma fila de cem, duzentas centopéias, todas seguindo a suposta líder.
A câmera recua, para mostrar um dos muitos horrores da natureza: todas as centopéias estão, na verdade, andando em círculos. O extremo da última fila se engata no suposto líder da primeira; as centopéias se movem, uma perseguindo a outra, rumo a lugar nenhum; amontoam-se, confundem-se, e morrem ressecadas na própria disfunção sistêmica, sob o sol.
Acho que é isso o que vem acontecendo, em parte, no Brasil. Pelo menos no que se refere a um assunto crucial, o da culpa e da impunidade. É como uma fila de centopéias: cada uma se junta à que está na frente, numa atitude persecutória: "A culpa é sua!". A outra responde: "Não é minha, é de quem está na minha frente!" -e todas as centopéias acabam se acusando enquanto andam em círculos.
Leia-se o noticiário dos últimos dias. Há um monte de supostos culpados. Chicão Brígido, que alugou seu mandato de deputado. Nicéa Pitta, envolvida no escândalo do frango. A juíza que diminuiu a pena dos assassinos do pataxó. Leonardo, o homem que explodiu (dizem) o avião da TAM.
Posso estar sendo radical, mas minha pergunta é simplesmente esta: todos estes casos, todos estes escândalos, não serão ridículos? Não é tudo uma migalha, uma minúcia jornalística? Não estamos atentando para meras bobagens fatuais, enquanto os verdadeiros escândalos passam despercebidos?
Sinceramente, não sei se Chicão Brígido é o pior deputado que temos no Legislativo. Se ele combinou de receber uma parte da verba destinada aos assessores, e os assessores concordaram, será que isso é um crime contra a pátria ou um mero acerto entre particulares?
Se a Sadia desistiu da concorrência para o fornecimento de frangos, e a outra empresa familiar, contraparente do Maluf, aceitou a preço menor, não seria o caso de investigar as duas empresas? Revelou-se que os supermercados compram coxas e sobrecoxas de frango por um preço inferior ao pago pela prefeitura. Há diferenças técnicas, diz o indiciado nas suspeitas; alguém teve paciência de verificar essa alegação?
Falo como leigo. Espanta-me, em todo caso, que tudo termine num aluguelzinho de um Vectra, assim como o Collorgate incidiu sobre um Fiat Elba.
Há uma sede de culpados no país. A morte hedionda do índio pataxó exigia um linchamento público. Ninguém se conformou com a sentença da juíza, que afirmava apenas: esses que mataram o índio são uns moleques e uns imbecis. Não são homicidas qualificados. Prendê-los durante trinta anos não vai melhorar o mundo.
Pouco importa: queremos culpados, queremos punições exemplares. Assim como cada centopéia quer seguir e perseguir a centopéia que está na frente. Essa atitude persecutória, punitiva, é natural. Mas decorre de um erro básico.
Causas abstratas
Há cerca de 15 ou 20 anos, estávamos todos cansados de inquisições e inquéritos. Tudo cheirava a ditadura. Foi o tempo em que atribuíamos todo crime a causas abstratas: a miséria, a alienação. Todo criminoso estava inocentado, já que a culpa era do "sistema". Era isto o que pensava a esquerda nos anos 80.
Os anos 90 marcaram, em especial depois do "impeachment" de Collor, uma nova personalização da culpa. Atribuir o crime à miséria pura e simples tornou-se fora de moda. Mais do que nunca, persegue-se a culpa individual.
Mas a idéia de culpa coletiva continua presente. A imprensa (quando erra) é culpada. Os políticos (são eles os responsáveis). A Justiça (é lenta, corrupta). O governo (inerte, triunfal).
Oscila-se, então, entre o personalismo total (Chicão Brígido, a juíza do caso pataxó) e uma despersonalização sideral e paranóica (a Justiça, os políticos). Procuramos os culpados. Seria melhor procurar soluções.
Tenho por óbvios os seguintes pontos:
1) Financiamento das campanhas. É evidente que, enquanto não se regulamentar isto, o campo para a corrupção estará aberto.
2) Construção de presídios. Enquanto a prisão for escola de crime e foco de corrupção moral, nenhuma punição será legítima.
3) Assistencialismo moderno. Observo o seguinte: o menino de rua goza mais, diverte-se mais, ganha mais dinheiro, achacando e assaltando o contribuinte no sinal de trânsito do que recebendo "assistência", cama e comida do Estado. Pensamos na miséria, em dar comida e cama para esses pobrezinhos. Mas eles pensam em tênis Nike e em videogames.
Não percebemos, mas o âmbito das necessidades da classe pobre e/ou indigente mudou. Não se trata mais de cama e comida, mas sim de bens simbólicos.
Não resolveremos nada se pensarmos em termos de culpa e punição, de necessidade e de atendimento. Uma Febem que fizesse sorteios periódicos de tênis Nike, em vez de cumprir meramente com as supostas necessidades "básicas", como cama, comida e educação, talvez tivesse mais condições de dar certo.
Pois "dar certo", na sociedade atual, é "tornar-se atraente", é "comprar o próximo", jogar com seu desejo, não com sua carência material. Pensar em termos de punição e culpa é puro anacronismo. Sejamos mais maquiavélicos. Isso trará mais insatisfação a nossos instintos bárbaros de justiça e punição. Mas talvez seja mais eficaz.

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