São Paulo, quinta-feira, 21 de agosto de 1997
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Choro, jazz e Brasil

EDUARDO GUDIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ao receber o convite da Folha pra falar sobre o choro, comecei a pensar um pouco no Brasil e sua música. Sou um bom escutador de choro e vez por outra tento compor dentro desse universo. Algo me bloqueava. É mais fácil escutar um choro (é tão bom escutar um choro) do que falar sobre ele.
Não me atrai escrever um texto técnico, com datas e biografias. Isso já existe e com muita qualidade. E agora? Só encontrei um jeito. Coloquei pra tocar um disco do Jacob do Bandolim e viajei pelo "túnel do choro".
Fui até o começo do século e encontrei Anacleto de Medeiros, pra mim o compositor mais impressionante desse período.
No nosso país nascia uma música popular extremamente sofisticada, que se baseava no tripé melodia-harmonia-ritmo, tão rica que talvez só existisse algo similar na música da América do Norte.
No resto do mundo a música popular não era tão evoluída e complexa, principalmente na questão da harmonia.
Segundo Mauríco Carrilho, nascia dessa forma o que chamamos de música brasileira, principalmente pelas obras de Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth.
Nesse tempo não havia ainda um ponto de interseção entre a nossa música e a música popular norte-americana.
Comecei a imaginar como -no nosso país com tanta dificuldade de possuir um bom instrumento, partituras e condições de país desenvolvido- os nossos compositores foram os mais sofisticados do mundo na época.
Não vai aqui nenhum ímpeto nacionalista. Quem duvidar é só pesquisar as obras de Anacleto e desse pessoal do começo deste século e fim do século 19.
Anacleto de Medeiros é de 1866 e Chiquinha Gonzaga de 1847. Comparem com a música popular do resto do mundo e entenderão o que estou dizendo.
O Brasil e os Estados Unidos disparam na frente. Com isso fica mais fácil entender um Ary Barroso, um Pixinguinha e até o nosso Tom Jobim, todos compositores sofisticados e reconhecidos por todo o planeta.
Até aí, tudo bem.
Na semana passada eu precisei escrever alguns arranjos para orquestra e me deu uma sede de ouvir Gil Evans, um dos maiores arranjadores da música popular contemporânea (aquele mesmo que fez a maioria dos arranjos para Miles Davis).
Queria beber desesperadamente em duas fontes, Gil e Severino Araújo, líder e fundador da orquestra brasileira Tabajara. Estava querendo achar um ponto entre as duas escolas.
Então fui à loja. Quando perguntei sobre Gil Evans, o vendedor me olhou como se eu fosse um intelectual de fino gosto e foi logo me mostrando a coleção de CDs do arranjador americano.
Comprei o que pude e fui até a seção de música instrumental brasileira. Consegui encontrar.
Cadê o Severino? Um outro vendedor perguntou se era forró. Aí eu pedi socorro prá aquele da seção de jazz. Senti de alguma forma que eu o estava decepcionando. Por coincidência acabo de escrever essa linha e o disco do Jacob terminou.
Coloco agora um do Pixinguinha e continuo a pensar no nosso Brasil. Por que no nosso país não temos chance de crescermos formando a nossa personalidade com toda essa riqueza que a nossa tradição tenta nos dar?
Aqui no Brasil se comemoram os 100 anos de blues com ares de modernidade. Não há nada mais "in" do que gostar de blues. Também gosto. Mas e quanto aos 100 anos de Pixinguinha? Será que as pessoas se sentem da mesma forma modernas e atuais?
O choro não está mais em julgamento. É um ritmo básico brasileiro. Enquanto alguém compuser um novo choro sempre estará colocando pelo menos uma colcheia num lugar inusitado.
Isso é evolução.
Não é só através da ruptura que evolui o processo artístico. Por isso Tom Jobim, Hermeto Pascoal, Edu Lobo, Chico Buarque e Paulinho da Viola fizeram e fazem choro.
E a lista é enorme. O nosso novo e original compositor Guinga tem sua raiz nos choros e valsas brasileiras.
Preocupa-me essa vergonha de ser simplesmente brasileiro. Eu continuo falando caixa de violão, às vezes estojo, quando estou mais atento, mas "case" não dá. É demais prá mim. Não fica muito bem na minha boca.
Essa experiência tem dado melhores resultados quando toco fora do país. Tudo isso me preocupa. Ainda mais hoje quando a música brasileira de sucesso não se baseia mais no tripé mencionado no início do texto.
Estou me referindo apenas à parte musical, a questão literária fica para uma outra análise.
Hoje o ritmo predomina com menos sofisticação e mais peso. Talvez tenha tornado a música brasileira mais competitiva, nessa era de comunicação de massas. O público pode participar mais das apresentações dos artistas (dançar e bater palmas).
Para encerrar, quero dizer que consegui, com muito esforço, três discos em vinil da Orquestra Tabajara e, escutando o nosso Severino e o nosso (por que não?) Gil Evans, tentarei achar aquele ponto de interseção.
Isso aconteceu naturalmente no Chorando Alto do ano passado, num fato curioso relatado por Helton Altman, idealizador e diretor do projeto.
Jim Hall, na sua apresentação com o Conjunto Época de Ouro, ficou em silêncio alguns compassos, de tanta admiração pelo maior violão sete cordas de todos os tempos: Horondino Silva.
Recuperou-se depois por meio da partitura, pois a apresentação foi sem ensaio, coisa que acontece no jazz assim como no choro. A improvisação é característica de ambos os estilos.
Agora é só viajar pelo "túnel do choro" no próximo Chorando Alto, nesta semana.

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