São Paulo, quinta-feira, 21 de agosto de 1997
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O professor e a senhora rica

PAULO HENRIQUE AMORIM

Perde-se tanto tempo com a "globalização" quando quem sabe como funcionam os pesos e as medidas é o velho professor Kissinger. Não há comércio internacional -com ou sem Internet- que possa substituir a força das potências. Bill Gates não é mais esperto que Bismarck.
O que os EUA estão fazendo na América do Sul é um trabalho metódico de "desmanche" do Mercosul, para não deixar o Brasil ser uma potência regional que possa competir com os EUA. Como? Dando armas ao Chile, para enfurecer os militares argentinos. Dando armas aos argentinos, para enfurecer os militares brasileiros.
Como se sabe, o Mercosul é uma aliança muito frágil. A desconfiança dos militares, de lá e de cá, não se desfaz assim, rápido, como numa decisão por pênaltis.
O Mercosul só saiu porque o presidente Sarney enfrentou a resistência dos militares, liderados pelo ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves. Precisou demonstrar que o Brasil ganharia a guerra com a Argentina construindo uma hegemonia econômica. E o Mercosul é isso: um instrumento da hegemonia brasileira.
Tanto quanto o Nafta, sua sucessora, a Alca, a Área de Livre Comércio das Américas, é instrumento da hegemonia econômica norte-americana na região.
Quando tudo parecia montado para o Mercosul, com a adesão, ainda que parcial, do Chile, ficar cada vez mais parecido com a América do Sul, os EUA aumentaram a pressão para criar a Alca. Agora, rasgam a fantasia e partem para a divisão do Mercosul. Fornecem armas ao Chile e concedem o status de parceiro militar privilegiado ("non-Nato ally") à Argentina. Com direito, em breve, à compra de aviões F-16.
Até agora, só países que estivessem na boca do furacão desfrutavam dessa regalia, o acesso a armas sofisticadas: Egito, Jordânia, Israel, Coréia do Sul e Japão, por exemplo.
E a Argentina, pela primeira vez em muitos e muitos anos, se torna, com isso, mais próxima dos EUA que o Brasil. A tal ponto que o presidente Menem, em "O Estado de S.Paulo", disse, no último domingo, que o Brasil não deve ter assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, porque isso "viria a quebrar o equilíbrio que temos atualmente na região".
Já estava claro que, para os EUA, a América do Sul é muito pequena para nós dois. Há um ano, o norte-americano Alexander Yates, principal economista do Departamento de Economia Internacional do Banco Mundial (uma subsidiária do Departamento do Tesouro, como se sabe), disse, num documento supostamente interno, que o Mercosul protegia indústrias ineficientes e criava barreiras à participação de outros países. Na verdade, nunca os EUA venderam tanto aos países do Mercosul quanto depois de sua criação.
Em janeiro passado, Charlene Barshefsky, "ministra" de comércio internacional dos EUA, num depoimento ao Comitê de Finanças do Senado norte-americano, referiu-se ao Mercosul como "aquele mercadinho deles". Em maio deste ano, em Belo Horizonte, a mesma sra. Barshefsky virou a mesa das negociações, ao tentar apressar a criação da Alca.
O interesse nacional norte-americano é impedir que o Mercosul fique de pé: o Brasil não pode ser um rival dos EUA na América do Sul. O interesse nacional argentino é conter a hegemonia do Brasil.
O interesse nacional brasileiro, bem... isso, entre outras questões relevantes, não conseguimos definir com clareza. Mas há quem saiba.
Recentemente, num jantar em Nova York, o professor Kissinger apresentou uma senhora norte-americana muito rica a um brasileiro muito inteligente. O professor disse: "O país dele está fazendo na América do Sul o que nós deveríamos ter feito".
O professor sabe.

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