São Paulo, sábado, 23 de agosto de 1997
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Longe vá, temor servil

VINICIUS DE FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Caiu o muro de Berlim. Qual espécie de metafísica autoriza a fazer dessa constatação motivo para desqualificar toda divergência a FHC? Pois assim concluíam dias atrás os editorialistas de "O Estado de S. Paulo": "Sendo a oposição o que é, o governo faz o seu melhor para resolver os problemas que a situação lhe coloca" (3/8).
Coube a Jabor (Folha, 12/8), porém, aperfeiçoar esse passe de mágica. Comentando a resenha de Pedro Puntoni ao livro de Jorge Caldeira, conclui que, a despeito do que pensam as oposições, "as forças produtivas não param".
Não percamos a inovação de costura diante da argumentação tradicional. Agora, o fato de que o mundo se move basta para anular as críticas feitas por um historiador a uma "história do Brasil"! Decididamente, os berlinenses não sabiam que estavam indo tão longe naquela gloriosa noite de dezembro de 89.
E olhem que essa astúcia da razão, na pena do nosso mais original metafísico, não pára aí. "Na verdade", o resenhista seria apenas sintoma de uma burrice congênita a todos aqueles que se opuseram à ditadura e hoje não são governo.
Assim, o fato de que FHC tenha se oposto à ditadura e hoje seja presidente permite a Jabor concluir que todos os que eram e permanecem oposição não passam de masoquistas disfarçados, que gostavam de apanhar.
Mau gosto à parte, vejamos o método. A especulação à moda Jabor alinha Deus e sua época do lado da esquerda burra: restrições a Gilberto Freyre ou a Glauber, o ódio dos árabes aos judeus, defensores da pizza dos precatórios etc. Estamos diante de um CD: você clica "Lula" e se perfilam, de mãos dadas a ele, os usineiros de Alagoas.
A despeito do ímpeto especulativo de nosso articulista, lembremos alguns fatos. As críticas da "esquerda stalinista" a Freyre, que aparecem na telinha do artigo de Jabor, certamente se devem a seu apoio a Salazar sobre a colonização portuguesa na África, lá pelos anos 50.
Outro click: a "tradição de um Parlamento com 170 anos", que confirmaria "a natural tendência histórica do Brasil para a democracia", inclui algumas máculas.
Aliás, José Murilo de Carvalho, que, ao que consta, não é stalinista, sustenta que a elite política no Império oscilava em torno de 560 pessoas.
O Parlamento, na Primeira República, convivia com o coronelismo, com presidentes eleitos com 99% dos votos e com um partido -o PR- análogo ao PRI mexicano. De 1937 a 1945, não houve Parlamento. De 64 ao início dos anos 80, sabe-se a história. E olhem que quem leu o livro de Caldeira e Goes foi Jabor.
Mas o equívoco de Jabor não versa apenas sobre os fatos. Eis que nossa suposta tendência natural para a democracia dá vez à conclusão de que "o fluxo material da produção é irreversível e chegará pela democracia ou, pior, pelo autoritarismo".
Empolgado com seu economicismo às avessas, o articulista esqueceu que a democracia supõe justamente a reversibilidade de processos que aparecem como inexoráveis.
Na política, o que a bússola indica é sempre resultado das forças que se opõem, e não, como pensa Jabor, o norte que, de antemão, contrapõe justos a baderneiros.
Sem se dar conta, o psicanalista das tendências nacionais se mune dos mesmos esquemas que enxerga numa esquerda fantasmática, condena a burrice dos que não são governo e sentencia que a única oposição legítima é aquela "técnica". O devaneio é coerente.
Afinal, se o Brasil é um exemplo de tradição democrática e a política se reduz à administração do que manda o curso inflexível da história, todos aqueles que fazem oposição de fora do ministério são idiotas que podem pôr tudo a perder. Bem ao gosto de alguém formado no que ele mesmo presume ser nossa natural tendência histórica à democracia.
Desfaz-se, portanto, o engodo. Incapaz de admitir divergências a seu civismo diáfano, Jabor instaura o autoritarismo inteligente: não diz que a oposição não pode ter vez, mas que não quer ter vez.
Aí vale tudo: pouco importa que Pedro Puntoni tenha apontado erros no trabalho de Caldeira. No fundo, trata-se de uma manobra que ameaça o bem do país.
As objeções desvanecem para dar lugar à conclusão de que resenhista e companhia são "os cafetões da miséria". Curiosamente, o mesmo método não se aplica à tese, emprestada a Caldeira e Goes, da natural tendência histórica para a democracia. Mas agora já sabemos porque. A essa tese, que não é sintoma de nada, que paira ao longo do texto como uma verdade indiscutível, pressuposta por Jabor, responde o axioma: "isso simplesmente não se discute".
Quem o contestar, como fez o resenhista ou quem quer que seja, que se inclua nas fileiras dos "intelectuais covardes" e dos "jornalistas ignorantes e espertos", e aguarde uma possível nova revolução cultural.
Afinal, corremos o risco de essa oposição terminar embalando "multidões de observadores ingênuos ou desatentos".
Conceda-se duas coisas a Jabor. Já raiou o stalinismo no horizonte do Brasil. E que o mundo não pára, incluindo-se aí nossa parte nele. Pois, como conclui nosso articulista, não sem certa nostalgia: "Na época da ditadura não se viam esses gatos miando."

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