São Paulo, sábado, 23 de agosto de 1997
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Sabiás, Clarice e a despolarização

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

Não deu no jornal, mas os sabiás estão de volta. Manhãzinha, no meio da rua barulhenta, há 15 dias, percebi o primeiro canto. Travessura do El Niño, os sabiás deveriam aparecer em setembro. Antes assim, o retorno precoce dá-nos notícia de que o metódico relógio da natureza, apesar das agressões, continua funcionando.
Sábio sabiá. Se cantasse o ano inteiro, não seria o canoro emblema de um Brasil ensimesmado que inspirou tantos poetas e músicos. Inventou um truque para chamar a atenção: o intervalo, a diferença. Personalizou-se. Enquanto para nós a vida corre e escorre por igual o ano todo, o sabiá recolhe-se, para ensaiar e reaparecer.
Como os rouxinóis, pássaro-metáfora do Velho Mundo que canta quando os outros dormem. Puro marketing, o rouxinol encontrou seu nicho para uma fama que ultrapassa o atual limite dos 15 dias, celebrado ao longo dos séculos. Oportunismo que só a diversidade permite. Plenitude por meio da diferença -se diurno fosse seu canto, não passaria de integrante do coro da passarada. Tarde da noite, solta-se como solista, sem acompanhamento.
Clarice Lispector, nossa escritora maior, era o oposto do óbvio. Mesmo antes do acidente que a levou a envolver-se com um certo véu de mistérios, desenvolveu hábitos e sistema distintos, para usufruir da suprema liberdade da diferença.
Escrevia de madrugada, quando tudo se recolhe, sobretudo a irrelevância. Apartava-se para aproximar-se e perceber as transcendências. Podia escapar da narrativa linear para contar algo mais do que histórias -a vida.
Mas não se vá imaginar que Clarice era uma reclusa. Vivia como todos nós, ganhava a vida colaborando em jornais, cuidava dos filhos, frequentava jantares e seminários sobre estruturalismo (que gozava sutilmente), ia "à cidade". Um dia contou que gostava de percorrer a rua do Ouvidor (espécie de "promenade" do Rio antigo, hoje camelódromo) no sentido contrário dos pedestres. O que em São Paulo chama-se de contrafluxo, contramão legalizada, alternativa dentro do sistema.
Aqui, por causa do sabiá e das suas alternativas, esbarramos num dos maiores sintomas da modernidade, anterior à globalização e que esta, evidentemente, só agravará. Estamos compactados num sistema que recusa opções, discrepâncias, idiossincrasias.
Não é problema de falta de democracia. É uma inibição para utilizar criativamente todos os recursos facultados pela própria democracia no sentido de dissolver a polarização e permitir o livre curso dos percursos autônomos, singulares e pluralistas.
É pacífico hoje que nosso maior problema social é a concentração de renda. Mas precisou que um economista americano, Albert Fishlow, durante o "milagre brasileiro" engendrado por Delfim Neto, viesse nos lembrar que era preciso redistribuir alguns miúdos das vacas gordas.
O imperioso processo de desestatização ora em curso, se não prestarem atenção, pode reproduzir como efeito perverso, na esfera privada, a mesma situação jurássica da concentração econômica. O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), de todos os órgãos públicos parece ser o único sensível aos perigosos indícios de um movimento centrípeta de conglomerações.
A soja está segurando o nível das exportações, mas um país verdadeiramente agrícola não pode depender das culturas extensivas, precisa descontrair a vida rural por uma malha de pequenas e médias propriedades.
Reparem que o MST até hoje não mostrou o que pode um sem-terra com terra. E a mais famosa "playmate", Débora Rodrigues, musa dos despossuídos, anuncia que aplicará o mísero cachê oferecido pela "Playboy" em troca da exibição dos dotes que Deus lhe deu, para comprar uma casinha na cidade, em Teodoro Sampaio. Por coerência deveria ter preferido um tratorzinho, vaca, galinhas, adubo, sementes. A urbanização enferma alastrou-se até as fileiras dos soldados do campo.
O que nos leva ao rodízio dos carros em São Paulo: um dos mais estimulantes mutirões para promover a desaglutinação de uma megalópole irremediavelmente saturada. Insuficiente: é imperiosa a flexibilização dos horários de trabalho -nos grandes prédios de Nova York a hora de entrada e saída de cada andar é diferenciada para permitir a vazão regular pelos elevadores.
Bem-vinda a MP permitindo o trabalho aos domingos -salvaguardados todos os direitos laborais. O descanso semanal previsto por Moisés previa UM sábado, não necessariamente O sábado (domingo para os cristãos ou sexta-feira para os muçulmanos). E porque todos, ou quase todos, descansam ao mesmo tempo numa urbe de 14 milhões, nos demais dias, hoje parcialmente inúteis, perdem-se tantas horas preciosas para exercer o direito ao trabalho.
Anteciparam-se os metalúrgicos de Piracicaba ao identificar uma oportunidade para aliviar o desemprego. Acordo inédito com um fabricante de autopeças (segundo a "Gazeta Mercantil") produziu um contrato apenas para o fim-de-semana. De uma só vez foram criados 70 postos de trabalho.
A polarização política, apesar do musgo crescido nas ruínas do Muro de Berlim, continua bloqueando o debate nacional. As esquerdas (ou aqueles que desejam encarná-la) não produzem alternativas. Aferradas ao corpete da "linha justa", perdem todos os bondes da história.
O sectarismo, variante política do fundamentalismo, é uma espécie de reumatismo deformador provocado por excessiva sedimentação no sangue. Aberração nestes tempos de geometria variável, interatividade, sincretismos, aproximações. "Immota labascunt", o que é rígido se desvanece, como já foi dito aqui. Ou como diz Marshal Berman citando o Manifesto Comunista de Marx-Engels: o que é sólido desmancha no ar.
A crise Buaiz foi ruim para o PT, mas, percebida na sua extensão pelo talento do senador Roberto Freire (PPS-PE), criou a possibilidade concreta de despolarizar a esquerda, tirando-a da esterilidade da contestação pela contestação. Com 20 anos de atraso, enfim, uma versão climatizada do "aggiornamento" euro-comunista.
O artigo 222 da Constituição de 88 criou uma espécie de reserva de mercado para empresas jornalísticas ao limitar o acesso de pessoa jurídica para recapitalizar empresas exauridas ou criar novas. Nossa mídia está superconcentrada e, por isto, altamente mimetizada. O deputado Aloysio Nunes Ferreira (PMDB-SP) vai apresentar uma nova redação para o artigo. Enquanto isto, mantêm-se o atual déficit de veículos impressos -precisamos, no mínimo, de mais cem jornais, entre pequenos e médios, para efetivar a liberdade de informação por meio da diversidade e da variedade.
E como estamos num caderno voltado para as coisas do espírito e sob inspiração de Clarice Lispector, cuja obra finalmente será reeditada na íntegra (pela Rocco), é preciso examinar os efeitos perniciosos da concentração cultural e as possibilidades que se abrem quando se desfaz. Contracultura, contracorrente são nomes diferentes para o mesmo jogo da individuação e alternância.
O "fenômeno" Raduan Nassar (reaparecimento estrondoso e merecido de um escritor que trocou a literatura pela agricultura) deve-se à existência de uma nova opção de jornalismo cultural -os "Cadernos de Literatura Brasileira", esmerada publicação semestral dirigida pelo poeta e jornalista Antônio Fernando de Franceschi que a ele dedicou sua terceira edição e iniciou esta oportuna bola-de-neve .
Abriu caminho para um veio que tanta falta faz ao jornalismo e à literatura, o jornalismo literário, desobrigado da convivência com o show business e as variedades. Em sua esteira, apareceram a excelente "Cult", "Azougue", "Dr. Chico". Fora da macroeixo Rio-São Paulo não existem muitas iniciativas iguais a "O Pão" de Fortaleza (jornal de poesia, no seu sexto ano, editado pelos irmãos Luciano e Virgílio Maia).
As megalivrarias são ótimas por causa do estoque, dos bancos de dados e porque escaparam do dogma religioso de que comprar livro no domingo é pecado. A despeito destes novos templos de consumo instalados no sul maravilha, Natal, capital de estado, tem apenas uma livraria.
As grandes editoras só investem em grandes nomes ou naqueles estreantes com pequena margem de risco. O campo da editora artesanal, está inteiramente desguarnecido, por falta de apoios e de interesse dos distribuidores e livreiros, que apostam na mesma direção, nos mesmos padrões e no mesmo público. A editora Giordano é a razão social de um apaixonado por livros, Cláudio, que em seu desktop, em casa, produz esplêndidas edições que leva pessoalmente aos clientes, sebos, bibliotecas.
E o Brasil novo, descentralizado, despolarizado e desconcentrado fica marcando passo. Na terra onde canta o sabiá, o mavioso inventor da alternativa, preferimos a cambaxirra. Chilreadora, chata, igual.

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