São Paulo, domingo, 24 de agosto de 1997
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A dança da "globrasilzação"

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DE DOMINGO

Um dos procedimentos estéticos que marcaram o movimento tropicalista consistia na alegorização do Brasil através do entrechoque de imagens do moderno e do arcaico.
O Brasil provinciano e cosmopolita, a carne seca e a banca de jornal, a bossa e a palhoça, o avião e a roça comentavam-se mutuamente em canções que também reuniam marcha e guitarra, zabumba e rock, triângulo e órgão elétrico.
O crítico Roberto Schwarz -para quem o tropicalismo foi um esnobismo de massas construído sobre alegorias sem futuro, que apenas fixavam a imagem do país como absurdo- chamou a atenção para o ambiente em que o movimento ocorreu: o momento pós-golpe, quando a modernização autoritária convivia com a exacerbação do discurso de direita e o ressurgimento triunfante de relíquias da província.
Anos depois, o sempre arguto Caetano Veloso respondeu ao crítico numa canção, dizendo que o Brasil "pode ser um absurdo/ mas ele não é surdo/ o Brasil tem ouvido musical/ que não é normal".
Hoje os tempos são outros, mas o espetáculo das incongruências permanece estridente. A cena da alegoria tropicalista renova-se nesses tempos de "globrasilzação".
As contradições do país do real aparecem na superfície social também como absurdo, recolocando em evidência o entrechoque do moderno e do arcaico sob a forma do global versus o nacional, do integrado versus o excluído, novamente, do urbano versus o rural.
No tropicalismo da "globrasilzação", carros importados cruzam passeatas de sem-terra com celulares, crianças sorridentes feias e mortas cheiram cola na porta de bancos eletrônicos, intelectuais de esquerda condecoram patronos da direita, fuzis israelenses calam a voz do morro coalhado de parabólicas, e o sol nas bancas de revista ilumina o constrangimento do modernizador: uma foto de FHC, o príncipe engravatado e europeu, trocando abraços com índios pataxós em luto pela morte de um dos seus membros, incendiado por adolescentes em Brasília.
Nesse novo velho Brasil, o provincianismo muitas vezes está do lado do internacionalismo, que ressurge deslumbrado em sua mimetização patética da fórmula anglo-saxônica.
É o bugre de cadilaque, é o Brasil Miami, é o "a nível de Primeiro Mundo", é o cosmopolitismo por assinatura, farsesco e estético, das elites a cabo.
É a mesma dança, meu boi.

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