São Paulo, segunda-feira, 25 de agosto de 1997
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Índia, o lugar maior que o mundo aqui e agora

FERNANDO GABEIRA
COLUNISTA DA FOLHA

"A Índia é maior que o mundo."
Essa frase de Jorge Luis Borges tem sido muitas vezes repetida, no momento em que o país comemora seus 50 anos de independência.
Milhões de pessoas morreram num parto que foi, ao mesmo tempo, a divisão entre Índia e Paquistão. Nenhum deles conseguiu resolver seus sérios problemas sociais, ambos têm a bomba atômica.
A grande vantagem da Índia foi ter mantido a independência política. Mas o fracasso diante do desafio lançado pelo discurso de Nehru, no dia da independência, é um convidado incômodo na grande festa. A Índia não se tornou o país desenvolvido, como ele previu.
Agora o elefante, que cresce a 6% ao ano, quer se tornar um tigre, crescer a 9, 10%.
Mas agora também, meio século depois, é impossível deixar de reexaminar todas aquelas brilhantes cabeças que conduziram o país à independência.
Em artigo publicado no "New York Review of Books", Amartya Sen revela algumas das divergências entre dois gigantes, Mahatma Ghandi e o escritor Rabindranath Tagore.
Lendo o artigo, tentei transportar o debate para aqui e agora e, detectar, como algumas das sementes já estavam plantadas lá antes da virada da década dos 40.
Tagore criticava a insistência de Ghandi nos teares artesanais que substituíram o tecido inglês.
Quando milhares de pessoas foram às ruas com seus teares produziram um grande ato simbólico. Mas o que Tagore questionava no seu tempo era a viabilidade econômica daquela saída ghandiana.
Sobre sexo também divergiam. Ghandi defendia a abstinência. Tagore, embora reconhecendo que na opção de Ghandi não havia hostilidade contra as mulheres, achava a tese irreal.
A história da Índia, na verdade, foi voltada para a situação concreta. A abstinência não estava nunca nos grandes debates, mas sim formas de controle maciço da natalidade.
As imagens de Ghandi e Tagore foram, de certa maneira, apropriadas pelos ocidentais, que estão sempre em busca de respostas e talvez muitas vezes só viram um homem franzino com seu cajado ou mesmo as longas barbas de Tagore como exóticos gurus.
Ghandi talvez não pudesse imaginar a bomba atômica ou o fracasso da revolução verde. Mas na sua insistência nos teares já estava embutida a política de auto-suficiência nacional que pode ter inibido os vínculos com o exterior, agora energizados pela globalização.
Certamente, Ghandi intuía os problemas demográficos da Índia. Mas o que faria com a abstinência, quando as saídas viáveis eram outras? E sobretudo como veria a equivocada posição da Igreja Católica tentando usá-la contra a epidemia de Aids.
O debate dos dois enveredou também pela análise da tradição. Tagore achava que as pessoas não deveriam se aprisionar pelo passado, nem ignorar as limitações o nacionalismo, que poderia estreitar seus horizontes.
Creio que o mais expressivo do debate deles aconteceu num episódio da escola de Tagore, Santinikon. Ao passar pela escola, Ghandi escreveu no livro de uma aluna: -Nunca faça uma promessa em vão. Se fizer uma promessa cumpra com o preço de sua vida.
Tagore ficou agitado, escreveu no mesmo livro um curto poema em Bengali. O poema dizia que ninguém deveria se tornar para sempre prisioneiro com uma corrente de barro.
Para que Ghandi, que talvez não entendesse Bengali, Tagore escreveu uma frase em inglês, no fim do poema:
Abandone sua promessa se ela se revelar errada.
São apenas fragmentos dos grandes debates daquela época. Vejo neles algumas luzes para entender a Índia aqui e agora. Eram tão sinceros e brilhantes que até hoje podem nos iluminar.
Quem pode deixar de ver o espírito de Ghandi, ele que salvou milhares de vidas evitando os conflitos religiosos, no momento em que Índia e Paquistão se reaproximam?
Quem pode ignorar Tagore num momento em que, para correr na velocidade de um tigre, o elefante precisa jogar os dados da globalização?
O que Ghandi, Tagore e Nehru ajudaram a construir, resistiu a tudo, principalmente à tentação autoritária.
Roger Garaudy, num tempo em não tinha mergulhado na luta religiosa, escreveu que éramos muito provincianos porque nos fixávamos no Ocidente, Londres, Paris, Nova York. Quem sabe nesses próximos 50 anos o lugar maior que o mundo encontre seu espaço no nosso universo?

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