São Paulo, segunda-feira, 25 de agosto de 1997
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João Gilberto brinca com o mito no Tom Brasil

PEDRO ALEXANDRE SANCHES
DA REPORTAGEM LOCAL

João Gilberto iniciou os trabalhos de homenagem aos dois anos do Tom Brasil, na última sexta-feira, já fazendo síntese. Entrou, sentou com seu violão lá no fundo do palco e cantou "Brasil Pandeiro". Só aí já resumia quase um século de música popular brasileira.
O samba-exaltação dialético de Assis Valente, co-responsável pelo mito de Carmem Miranda e um de nossos maiores compositores, foi, em 72, grito de guerra dos pós-tropicalistas Novos Baianos e parte de manifesto pela contaminação da MPB pelas guitarras elétricas.
Justo agora que os NB se reformaram, João retoma o tema de Assis e transforma em bossa nova os trejeitos de Carmem, o samba dos NB, a guitarra elétrica. Para isso há João Gilberto.
Coisa parecida fez com "Louco (Ela É o Seu Mundo)", de Wilson Batista e Henrique de Almeida, desatando o vozeirão de intérprete anterior, Nelson Gonçalves, em pura delicadeza bossanovista. Nada resiste ao peso de João Gilberto.
E ele pisou no palco disposto a perenizar o mito. Como eremita acuado diante de inesperada platéia, encolheu-se sobre si a cada chuva de aplausos, como se as palmas ferissem seu corpo.
Fora os aplausos, inevitáveis, João determinou, só com olhares e caretas, que -mais uma vez- tudo era proibido em seu show: fumar, cantar, se mexer, quase respirar. Até os mais desobedientes eram discretos, da madame que o regia com as mãos ao senhor que cochilava embalando pelo ninar de João.
Após a nona música, um espevitado ousou reclamar, em altos e graves brados, que o som estava muito baixo. "Isso vai ficar assim a vida inteira", retrucou João, seguido pelo estrondo conspiratório das palmas. "Eu como fogo aqui, vocês aí. Aqui não é fácil."
Para acabar, soltou uma interjeição: "Meu Deus!", como a não entender que existisse um grosseirão daqueles.
E emendou com o quê? "Pra Que Discutir com Madame", de Haroldo Barbosa e Janet de Almeida. "Madame tem um parafuso a menos, meu Deus, que horror", deu para entender?
Aí cantou, feliz, baixinho, "Carinhoso", de Pixinguinha e João de Barro; colocou letra em "Na Baixa do Sapateiro", de Ary Barroso, que em 73 gravara só instrumental; chamou "O Pato" de "patinho bonitinho"; revisitou o repertório de Orlando Silva ("Preconceito", de Wilson Batista e Marino Pinto, "A Primeira Vez", de Bide e Marçal). E foi embora.
Aí surpreendeu. Voltando ao bis, inverteu a máxima de que tudo era proibido. Só cantou o que o público pedisse. "Qual?", perguntava, para então assistir à feira que se instalava, cada um gritando mais alto para levar sua canção. Sessão farofa bossa nova: "Chega de Saudade", "Desafinado", "Eu Sei Que Vou Te Amar", "Corcovado".
Só sorria, deixando o público cantar só. O show já havia terminado, e ninguém percebeu. Muitos saíram gostando mais da própria voz que da de João.

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