São Paulo, terça-feira, 26 de agosto de 1997
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Entrevista com gari na imundície da cidade

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Entrevista de propósito com um gari de São Paulo. J.S. 35, baiano de Jacobina, há três anos veio de lá, onde era ajudante de pedreiro, e trabalha na "varreção", da cidade. O lugar, perto do Mercado Municipal, no centro, recendia a mijo e restos de comida.
Casado, sem filhos, ele estudou até o primeiro ano primário. Mantive a fala original de J.S., só corrigindo as concordâncias, porque às vezes ele soa como um personagem de Guimarães Rosa.
*
Pergunta - É humilhante esse trabalho de varrer rua?
Gari - Não, eu não acho. É um trabalho e é honra. O pior é tirar dos outros, né? Roubar o dos outros é que é feio.
Pergunta - Não era melhor ser ajudante de pedreiro?
Gari - Ah, exaltamente não, porque lá eu ganhava um salário mínimo só, e aqui eu ganho quase três. Ganho R$ 260,00. A cesta básica é R$ 62,00, o ticket refeição é R$ 185,00, mais a insalubridade, que é R$ 22,00. Mas isso eu acho que eles não estão pagando, que eu não vejo. E precisa você denunciar aí que os supermercados não estão aceitando mais o ticket refeição. E que também o nosso fundo de garantia eles não estão depositando.
Nessa empresa aqui tem também, por exemplo, que eu trabalhei antes, oito meses, pintando guia de rua com cal, mas eles não querem contar como tempo de serviço, que era sem carteira. Mas eu tenho testemunha. Eu caminhava mais de 10 km por dia pintando guia. E lá eu ganhava outra coisa. Trabalhar com tinta é uma coisa, e com varreção, é outra. Que aqui também eles mandam a gente trabalhar de coletor. Eu digo: não, não sou coletor, não vou trabalhar de graça. Eu sou da varreção. Coletor ganha é R$ 400,00.
Pergunta - Você trabalha sem luvas?
Gari - Luva eles dão. Mas eu não botei hoje porque está muito quente. Mas não dão é bota de borracha. Só esse sapatinho aqui, e a gente nessa água podre, pegando frieira.
Pergunta - Quanto você paga de aluguel?
Gari - Não pago. Moro na casa de uma tia. Se eu pagasse, oxente, já estava passando fome, como tem muita gente aqui. Se você vai alugar uma casa, é 200 contos. Não dá. Se eu pagasse aluguel, já tinha ido embora. Diretamente eu ia para Salvador vender gelinho ou cerveja numa caixa.
Pergunta - O que você acha que deve ser feito para as pessoas não sujarem as ruas?
Gari - É aí, olha. Que as pessoas sujam demais as ruas e não têm respeito por nós. Em convém, eu acho assim, o pessoal, esse Brasil nosso, eles acham que nós somos obrigados a limpar. A gente acabou de barrer ali, eles vão e sujam. Eu fico olhando assim. Eu digo: dona, eu acabei de barrer aí e a senhora vai sujar de novo bem aí? Eles dizem que a obrigação da gente é limpar mesmo. Eles não põem na cabeça deles. Eu acho assim, determinado, que a imundície já é da casa deles pra rua. Porque, que a gente é assim uma pessoa fraca, de pouco dinheiro, mas a gente quer um copo limpinho pra tomar água e tudo. Porque a limpeza é bonita em todo canto, não é?

E-mail mfelinto@uol.com.br

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