São Paulo, quarta-feira, 27 de agosto de 1997
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A caricatura

ROBERTO ROMANO

Juruna deu aos políticos a excelente lição: nunca falar ou ouvir sem gravadores. Quase sempre, os nossos dirigentes assumem o discurso duplo: dirigem uma fala aos amigos, outra para os iludidos. Seguindo o conselho do líder indígena, devemos comprar um gravador. Essa idéia foi-me despertada pela entrevista de José Arthur Giannotti a Elio Gaspari (Folha, 24/8).
Não "tiro casquinha", como reclama o filósofo. Mas todos os que criticaram a política do governo para as universidades particulares anunciaram os tropeços do Conselho Nacional de Educação.
O governo usou, para impor o Exame de Cursos, a propaganda sem limites. Para melhor chantagear os campi oficiais, o Ministério da Educação chegou a dizer que o ensino público recusava o provão porque este manifestaria a falta de qualidade real de seus cursos.
Após os resultados, o mesmo governo, diante da evidência -o desastre dos setores privados-, passou a defender verbas elevadas para uma espécie de Proer da educação: milhões de reais para "melhorar o ensino superior privado".
Este último, durante décadas, nada aplicou na melhoria do seu quadro docente, pouco ligou para a qualidade de seus cursos, tratou os alunos como fonte de lucro. Agora um prêmio ao péssimo desempenho é-lhe proposto, enquanto o mesmo governo ameaça retirar do setor público, no CNPq e Capes, cerca de R$ 240 milhões, destinados a bolsas de estudo e pesquisa.
Dois pesos e duas medidas: quem apresenta qualidade é punido, piratas do ensino são premiados na administração "social-democrata".
Durante a SBPC de 1996 (PUC-SP), debatemos a universidade paulista -pública e privada- na presença, entre outros, da sra. Eunice Durham, assessora governamental para o ensino superior e, agora, sucessora do sr. Giannotti no CNE.
Em minha alocução, afirmei:
"As universidades privadas ganham dinheiro enganando alunos, dando-lhes ensino de péssima qualidade. As instituições públicas, e algumas confessionais, com todos os defeitos, fornecem conhecimentos rigorosos, próximos dos padrões cosmopolitas."
"Até o governo Collor, devido às falcatruas e às trocas de favor no Congresso, o Estado enviava muito dinheiro para universidades de beira de esquina, que nem sequer laboratórios e bibliotecas possuíam."
"Mesmo em inspeções benevolentes do MEC nas faculdades privadas, as ditas instituições enfrentavam os fiscais emprestando bibliotecas inteiras de uma escola para outra. Para que o número mínimo de livros e aparelhos exigido por lei fosse obedecido, o 'deus ex machina' era a companhia de mudanças. Aristóteles ensinava andando. As universidades privadas moviam-se ao tom de 'o mundo gira, a Lusitana roda'. Eram peripatéticas a seu modo."
"A conivência entre burocratas e governantes terminou no fechamento, por corrupção, da mais alta instância educativa do país, o Conselho Federal. Os donos do ensino privado se apossavam de verbas públicas -não raro por meio de bolsas que nunca chegaram aos alunos- e baixavam o nível ético e científico de suas escolas, pouquíssimas merecendo o nome de 'universidade', uma vez que o todo curricular e o de pesquisa exigidos por lei não eram atendidos. A CPI do Orçamento não deixou dúvidas sobre esse prisma".
A professora Durham declarou para as 200 pessoas do auditório que o retrato apresentado por mim das universidades privadas era uma "caricatura".
Graças aos céus, a mesa redonda foi gravada. O que diz Giannotti sobre o mesmo tema? "Há faculdades sem bibliotecas, que tomam estantes emprestadas quando temem a chegada da fiscalização. Há escolas que são caça-níqueis (...). A Constituição determina que uma universidade seja também um centro de pesquisas, algo maior que um conjunto desconexo de cursos. Nesse critério, metade das universidades existentes estão desqualificadas".
Caricatura? O costume oficial é olvidar a escrita. A letra, embora efêmera, ostenta mais solidez do que os espíritos cegos pelos interesses políticos ou ideológicos.
Nem toda universidade particular entra no rol das espeluncas. Muitas universidades oficiais precisam receber modificações. Esse é um trabalho que exige respeito e cautela. Abrir a máquina de calúnias contra os campi, indiscriminadamente, só favoreceu, até hoje, as fábricas de diplomas, fontes de atraso mesmo na produção de mão-de-obra qualificada. Os seus donos recebem a conivência dos que deveriam exigir rigor científico.
A política oficial de ciência e tecnologia, ela sim, é impagável. Se forem realizados os cortes propostos pela Secretaria do Planejamento para o CNPq e a Capes, entraremos no século 21 como enorme caranguejo, rumo às cavernas e à Pré-História.

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