São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997
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Pinguelos em luta no mato e na maloca

JOSÉ PAULO PAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

No décimo capítulo de "Macunaíma", o herói supostamente sem nenhum caráter criado pela irreverência modernista de Mário de Andrade irrita-se com o discurso de um mulato acerca da simbologia patriótica do Cruzeiro do Sul e lhe contrapõe a lenda da ave Pauí-Podole que, para se livrar das formigas, foi morar no céu, onde se metamorfoseou nas quatro estrelas do Cruzeiro. A narrativa de "Macunaíma" encanta a tal ponto seus ouvintes paulistanos que eles, com o "coração cheio de explicações e cheio das estrelas vivas", passam a ver, desde então, as luzes do céu como as vê o imaginário indígena, ou seja, como brasão dos "assombros misteriosos que fizeram nascer todos os seres vivos".
Com ambientar em São Paulo alguns lances fundamentais da sua rapsódia folclórica, Mário de Andrade como que lhe estava atribuindo a função pedagógica de não deixar os homens da cidade das máquinas esquecerem de todo as raízes silvestres mais remotas da sua cultura -o mundo de assombros da mítica indígena. Que tal lição não foi em pura perda prova-o agora o só fato de, quem já tenha lido o "Macunaíma" com um mínimo de empatia, estar com a sensibilidade suficientemente afinada para deleitar-se também com os contos de "A Guerra dos Pinguelos". Não só porque neles voltará a encontrar outras versões de episódios aproveitados por Mário de Andrade na sua rapsódia -a exemplo do esmagamento dos bagos de Macunaíma por culpa do logro nele pregado pelo macaco comedor de coquinhos- como sobretudo porque irá mergulhar mais fundo naquela estranha aura de ingenuidade, violência, malícia, horror, sortilégios e prodígios que coroa os mitos e que parece evolar-se diretamente das sulfataras do inconsciente coletivo -construto discutível, mas nem por isso menos sedutor.
"A Guerra dos Pinguelos" foi o título originalmente dado pela antropóloga Betty Mindlin a uma coletânea de contos eróticos de aborígines da Amazônia brasileira que ela coligiu e que acaba de ser editada pela Record com o título bem menos apropriado de "Moqueca de Maridos". Com essa coletânea, Betty Mindlin dá continuidade a um projeto de extrema importância, qual seja, o de salvar, antes que seja tarde, a memória cultural de povos indígenas do Brasil, cujas línguas estão à beira da extinção. Iniciado com "Vozes da Origem" (Ed. Ática, 1996), o projeto vem sendo desenvolvido com rigor científico tanto na coleta do material quanto nos escólios antropológicos com que a sua organizadora o enriquece. Nem por isso tais publicações se destinam apenas aos especialistas. Pelo seu interesse humano e estético, agradarão igualmente ao leitor comum.
Ao dar o título de "A Guerra dos Pinguelos" à segunda dessas coletâneas, quis Betty Mindlin certamente ressaltar, por intermédio de um coloquialismo emblemático, a "enorme liberdade de expressão erótica, (...) sem nenhuma censura", com que eles lhe foram transmitidos pelos 36 narradores indígenas relacionados na página de rosto do volume. Transmissão oral, feita nas línguas maternas dos povos a que eles (ou elas) pertencem -Macurap, Tupari, Jabuti, Aruá, Arikapu e Ajuru, todos de Rondônia.
A partir de registros gravados e com auxílio de tradutores também indígenas, Betty Mindlin verteu para o português e pôs por escrito os contos, mantendo, na medida do possível, o estilo oral dos tradutores. Mas são inevitáveis as perdas nessa transposição do oral para o escrito. Perdem-se as inflexões de voz com que o narrador busca manter desperto o interesse dos ouvintes, o jogo de ênfases com que vai realçando os pontos altos da narrativa. Para se ter uma idéia da medida dessa perda, basta ouvir a faixa 16 do CD "Ihu - Todos os Sons", de Marlui Miranda. Ali, ela imita à perfeição uma índia Suyá recitando o mito da origem do milho, recitativo em que as variações de timbre e os prolongamentos silábicos musicalizam tão expressivamente a narrativa.
Em alguns momentos de "A Guerra dos Pinguelos", a própria narração faz referências a elipses desses valores vocais. Por exemplo, no conto "Tupari 24", sobre a donzela Piripidpit que, por recusar o marido escolhido para ela, foi morta, assada e comida pelos primos dele, diz a narradora que, enquanto moqueavam o corpo, os assassinos "cantavam como eu estou cantando agora". Também no conto "Ajuru nº 39", a desconsolada menina cujo sogro-onça lhe devorou o irmão pequeno, "cantava o choro, como eu estou cantando agora, dizendo o nome do sogro" (itálicos meus).
No domínio da oralidade, as modulações melódicas, as expressões fisionômicas e gestuais do narrador cumprem a mesma função que recursos retóricos como a descrição, o suspense, a reiteração, a elipse, a hipérbole etc. cumprem no domínio do conto literário. Tais modulações e expressões são um complemento formal ao enredo esquemático da estória, que se limita a arrolar sucintamente as peripécias do entrecho, sem demorar-se na descrição de seus ambientes ou personagens. Daí que se possa estender à audiência dos contos folclóricos o dito de Ortega y Gasset acerca do "primitivo leitor de romances", que era como "o menino que, numas poucas linhas, num simples esquema, crê ver, com vigorosa presença, o objeto íntegro".
Embora as peripécias dos enredos dos 67 contos coligidos em "A Guerra dos Pinguelos" sejam narradas, as mais das vezes, em apenas duas ou três páginas e o caráter de suas personagens esboçado nuns poucos traços, a impressão que eles deixam no espírito do leitor letrado é da "vigorosa presença" de um imaginário cujos sortilégios semelham ser, a um só tempo, exóticos e estranhamente familiares. Isso porque têm todos a ver com o universo dos mitos, conforme explicita o subtítulo do livro de Betty Mindlin e seus narradores: "Uma Antologia dos Mitos Indígenas da Rondônia".
Seres divinos
Se bem que a palavra grega "mythos" designe qualquer espécie de conto, o certo é que ela não tardou a adquirir, pelo menos desde Platão e Euêmeros, a acepção restritiva de narrativas em torno de seres divinos ou superiores e das origens das coisas e fenômenos da natureza. Por sua vez, os etnólogos reservam a designação de contos míticos para aqueles que dizem respeito a um mundo anterior ao mundo presente. Essa duplicidade de mundos, que é sistêmica no imaginário dos povos ditos "primitivos", poderá ser encontrada em vários contos de "A Guerra dos Pinguelos", como em pouco se verá.
A sensação de exotismo que tais contos suscitam tem a ver, obviamente, com a distância cultural que extrema a vida "civilizada" do leitor da vida selvagem neles figurada -visando as aspas, em "civilizada", abrandar com um grão de ceticismo voltairiano o que possa ainda haver de triunfalista nesse adjetivo de desastrosa carreira. Quanto à aura de estranha familiaridade de que se faz contraditoriamente acompanhar a sensação de exotismo, não é nada fácil explicá-la.
Na teoria junguiana dos arquétipos ou imagens primordiais, os motivos míticos são "elementos estruturais da psique" (1) -melhor dizendo, da sua parte mais profunda ou inconsciente. Ao reencontrá-los sob outras figurações num conto que não conhecíamos, surge, então, aquela impressão de familiaridade/estranheza que nos dão numerosas passagens de "A Guerra dos Pinguelos". Mesmo pondo sob suspeição o construto junguiano de um inconsciente coletivo, não há como fechar os olhos à intrigante similitude estrutural dos mitos dos mais diferentes povos -similitude indicativa, quando mais não seja, das mesmas operações básicas da imaginação mitopoética, a despeito da variedade dos materiais que elas se aplicam em afeiçoar dentro de cada cultura.
Ao opor reparos à noção postulada por Ernest Cassirer, de o mito ser sinônimo do modo mitopoético de consciência, Philip Wheelwright (2) faz uma distinção assaz pertinente entre a universalidade da imaginação mitopoética e a especificidade dos mitos que engendra.
Nas narrativas de "A Guerra dos Pinguelos", três operações básicas da imaginação mitopoética avultam. A primeira é a ingerência constante de espíritos ou entidades sobrenaturais -Txocopods, Epaitsits, Tapurás- na vida dos indígenas, subvertendo-lhe a normalidade com feitos prodigiosos. Tais feitos pertencem as mais das vezes à ordem da metamorfose, outra operação a que o imaginário mitopoético recorre para dar conta, em lendas etiológicas, da origem de grande parte dos seres, coisas e fenômenos da natureza; daí o poeta Ovídio ter subsumido sob o título de "Metamorfoses" sua narrativa versificada de episódios da mitologia grega. A terceira operação mitopoética iterativa nos contos de "A Guerra dos Pinguelos" é a duplicação temporal do mundo em anterior e presente.
Releva notar que esse presente é sempre o dos personagens da narrativa e, nas pouquíssimas vezes que traz algum indício de datação histórica, ele se revela mais ou menos remoto do presente dos narradores. Assim, o conto 46, sobre a Raposa Antiga que roubava bichos de estimação das malocas dos Jabutis, exclui a galinha desse rol de bichos, porque "nesse tempo não existia galinha", ave introduzida na região com a chegada dos brancos. Já a circunstância de a protagonista do conto 23 ter sido bisavó da narradora situa a ação narrada num "presente" bem menos remoto. Note-se, outrossim, que, enquanto o registro do conto 46 é claramente mítico, por atribuir dom de fala humana à Raposa Antiga e referir intercurso sexual de onças com mulheres, o conto 23 limita-se ao registro histórico de um ataque sanguinário sofrido pelos Tupari de seus inimigos Pawatü. Os itálicos nos adjetivos "histórico" e "mítico" visam a contrapô-los: aquele implica algum tipo de determinação temporal; este é, quando não intemporal, anterior ao tempo histórico.
Podem-se distinguir três níveis de temporalidade em "A Guerra dos Pinguelos". O primeiro e mais longínquo é o tempo mítico da origem das coisas em que se situa a ação dos contos de caráter etiológico. É o tempo por excelência da realização utópica, da soberania do desejo, da fundação pelo Verbo: "Nesse tempo de antigamente, o que se dizia acontecia" (conto 46); "nesse tempo, tudo o que se falava acontecia de verdade" (conto 49).
Sucede-lhe um tempo não mais etiológico, mas ainda ante-histórico e mítico, cujos sucessos, também permeados de maravilhoso, envolvem conúbios de seres humanos com animais ou entidades sobrenaturais investidas de traços antropomórficos. Finalmente, nuns poucos contos, o tempo histórico começa a insinuar-se timidamente num ou noutro tipo de circunstância datadora.
Um dos mais líricos, entre os contos etiológicos, é o 17, sobre como os Macurap aprenderam a cantar "música de verdade", a qual foi ensinada a uma jovem da tribo pela cobra Botxatô, encarnação zoomórfica do arco-íris: essa aproximação entre cores e sons faz lembrar a teoria das correspondências de Baudelaire, Rimbaud e outros simbolistas. Passa-se do lírico ao erótico-grotesco no conto nº 2, também Macurap, acerca da origem do peixe elétrico da Amazônia: enjoada do marido, uma mulher casada passara a deleitar-se com um Txocopod ou assombração que, de noite, enfiava o braço por entre as palhas da maloca para acariciar-lhe o clitóris; mas este começa a crescer até alcançar proporções catastróficas, quando então é cortado e atirado n'água, onde se converte no poraquê ou peixe elétrico...
Este conto traz à tona outras características da mítica erótica de "A Guerra dos Pinguelos". A começar da palavra emblemática com acerto escolhida pela organizadora da coletânea para dar-lhe título. "Pinguelo" designa, ali, não apenas o pênis mas também o clitóris. O "não apenas" e o "também" servem para marcar uma dualidade cujos termos têm pesos específicos diferentes. Conquanto os contos que estamos comentando dêem voz a um imaginário predominantemente falocêntrico, isso não obsta a que neles se faça ouvir, de quando em quando, a voz da libido feminina, abafada, mas reconhecível.
Na aparência, o conto etiológico do peixe elétrico é um típico conto de exemplo. Por querer ser dona do seu desejo, como o é o homem na sociedade homossocial (para usar um adjetivo feminista em moda), a mulher é punida com o agigantamento falomórfico do órgão com que transgrediu o direito marital de posse. Mas esse agigantamento, ao hiperbolizar também a transgressão, dá-lhe uma ênfase que torna no mínimo ambígua a exemplaridade.
O conflito entre libido masculina e feminina reaparece em várias outras estórias. Na nº 1, Macurap, as mulheres da tribo encantam-se com um ser fluvial e vão atrás dele, declarando contra seus maridos uma greve do sexo, como as atenienses da "Lisístrata", de Aristófanes. Também na estória 52, Jabuti, as mulheres, enojadas dos homens que antigamente comiam as próprias fezes com pamonha, metamorfoseiam-se em pássaros e os abandonam. A estória nº 5, Macurap, versa o tema das amazonas, donzelas sem homens que viviam numa ginocracia, mas um dia se apaixonam por um caçador extraviado a quem ensinam "os segredos das folhas, da caça e da pesca abundante"; tais segredos são todavia postos a perder por culpa de um intrometido ou "teimoso", personagem que em vários contos assume o papel estereotípico de transgressor ou violador de mistérios. Na estória nº 4, as mulheres não só abandonam os maridos como, incitadas por Katuxuréu, a velha hedionda que vive no fundo de uma lagoa, passam a matá-los e devorá-los.
Dois outros curiosos contos "feministas" dos Macurap merecem referência à parte, por se reportarem ambos ao "antigamente" das origens míticas. O nº 10 fala do tempo utópico em que as mulheres "não tinham nem barriga grande, nem dor durante o parto" porque copulavam e partejavam pela unha do pé, isso até o dia em que um homem, apaixonado pela mulher do Caburé ou coruja, fez nela uma vagina; desde então as mulheres passaram a menstruar, com o que as "unhas do pé perderam o encanto anterior"... E no conto 73 o topos do mundo às avessas rastreado por Ernst Robert Curtius na literatura antiga e medieval (3) aparece em registro utópico-humorístico: "Antigamente os homens é que ficavam menstruados"; tinham de ficar reclusos numa pequena choça e aguentar a caçoada das mocinhas; irritado com isso, um rapaz atirou um pouco do seu sangue menstrual numa delas, "acertou em cheio, bem no meio das pernas", e a partir daí o mundo às avessas recompôs-se: "as mulheres é que passaram a ficar menstruadas, em reclusão cada mês".
Além da duplicação do tempo em mítico e histórico no universo narrativo de "A Guerra dos Pinguelos", cumpre atentar para a organização do seu espaço vital em duas áreas contrastantes: a maloca e o mato. Embora o adjetivo "selvagem" nomeie aquele que vive na selva, o índio, pela circunstância de estar tão perto dela, estabelece uma nítida distinção entre a taba onde vive e o mato que, intermediado pela roça -ou seja, pela vegetação já domesticada por ele-, lhe rodeia as malocas. Disso dão claro testemunho as suas estórias míticas.
Nelas, como já vimos, os humanos convivem permanentemente com espíritos a cujos poderes mágicos se devem as metamorfoses que acionam a dramática da narrativa. Esses espíritos são entidades maléficas, gulosas de carne humana e com gostos contrários aos dos homens, tanto assim que preferem os lugares imundos e os bichos que neles vivem, sobretudo ratos.
À semelhança das vítimas do lobisomem e do vampiro europeu, as vítimas de tais espíritos podem se transformar em assombrações: a protagonista do conto Tupari 30 namora um Epaitsit e, depois de devorada por ele, vira também Epaitsit. O mesmo acontece nas várias versões (7, 44 e 48) do macabro conto da mulher voraz cuja cabeça se soltava à noite e vagava em busca do comida. Impedida de retornar ao corpo, porque o enterram ou queimam, a cabeça vai morar no mato, lá vira um Txocopod que reina sobre os ratos e devora qualquer humano que lhe passe perto.
Enquanto na taba e na maloca a presença humana congregada tem o dom de afastar os espíritos maléficos, o mato ermo está infestado deles, que ali encontram o seu espaço de eleição. Tal contraste entre espaço humano e espaço sobrenatural ganha relevo nas estórias de malocas abandonadas por seus moradores que passam a ser habitadas por espíritos. Como no conto Tupari 29, em que uma mulher, por estéril, é rejeitada pelo marido e vai morar numa maloca abandonada onde vive um casal de espíritos. Ela aceita ser babá do filhinho-espírito deles, mas rouba-o um dia e foge para a aldeia; o pai-espírito, ameaçando matar todos os habitantes da aldeia, consegue recuperar o filho. Essa invasão, por uma entidade sobrenatural, do espaço humano defeso, justifica-se pela violação do direito parental cometida por um humano.
Com os seus espíritos comedores de gente viva, o mato é um espaço titânico: os txocopod aterradores que o dominam lembram os Titãs da mítica grega chefiados pelo Crono devorador dos próprios filhos. A esses protodeuses monstruosos, tão próximos do Caos primevo que, anteriores ao tabu do incesto, consorciam-se com suas irmãs Titânidas, sucedem os deuses civilizadores do Olimpo.
Pelo fato de os perigos e horrores titânicos que dominam as representações do Além nos contos eróticos de Rondônia não deixarem nenhum lugar para entidades favoráveis de índole olímpica e civilizadora, nem por isso o interdito do incesto deixa de ser ali menos categórico. O incesto só chega a consumar-se num conto (Macurap 13) curiosamente evocador da lenda grega da Psiquê, que perde o amor de Eros quando desobedece à proibição de ver-lhe o rosto. Na estória, Macurap, certa donzela visitada toda noite por um amante incógnito fica curiosa de conhecê-lo e, enquanto ele dorme, pinta-lhe a cara com jenipapo; no dia seguinte, descobre que se trata do seu próprio irmão; este, coberto de tristeza e de vergonha, foge para o céu, onde se converte em Uri, a lua.
Não obstante a devoradora ferocidade dos txocopods, humanos de ambos os sexos eventualmente se arriscam, para sua desgraça, a consorciar-se com eles. É o caso do filho do cacique do conto 15, que toma por mulher a órfã de um Txocopod e acaba sendo devorado por ela. Já os conúbios com bichos oferecem menos perigo, talvez pelos laços totêmicos que os aproximam do mundo humano. Outrora, bichos como o caburé (conto 10), a anta (conto 14), a arara (conto 16), o urubu (conto 34), o sapo (conto 43) e a onça (conto 46) podiam assumir a forma de gente e casar-se com humanos. Estes, em contrapartida, podiam metamorfosear-se em animais.
No conto Jabuti 55, uma esposa adúltera namora secretamente uma anta-macho, que antes de fazer amor tira a pele, pendura-a num galho e se torna gente; apesar de advertido a não fazê-lo, um jovem veste a pele da anta e se metamorfoseia nela. Outras vezes, a metamorfose é incompleta, como a sogra que, por um feitiço do genro, vira metade mulher, metade bacurau (conto 56), ou a jovem que, por recusar o marido escolhido para ela, torna-se, por feitiço dele, metade mulher e metade cobra (conto 67).
Para a imaginação mitopoética dos índios Jabuti, tais metamorfoses são naturais, porque a aparência é só casca, como está dito no conto 45: "É a pele que fica, uma coisa vira outra, como o lagarto vira borboleta". Num belo conto Tupari (28), de que há também uma versão Arikabu, a introdução da arte cerâmica num tempo em que "as mulheres ainda não tinham potes para cozinhar" é figurada, num lance de dedicação maternal, na mãe que se metamorfoseia em pote de barro para ajudar a filha a cozinhar chicha, bebida fermentada da maior importância na dieta dos indígenas.
Essa constância do processo metamórfico nos contos de "A Guerra dos Pinguelos" ilustra quão próximo está, no imaginário indígena, o mundo dos homens do mundo dos espíritos e do mundo dos animais e das plantas. A fluidez das fronteiras que os separam ostenta-se, quando mais não fosse, na rapidez das mágicas transformações que as rompem a cada passo e que fazem lembrar o que Italo Calvino disse das "Metamorfoses" de Ovídio: de, nelas, a "mescla deuses-homens-natureza" instituir um "campo de tensão em que tais forças se defrontam e equilibram".
Não deve causar maior espécie essa prodigiosa mescla metamórfica se fazer, na mítica dos povos indígenas de Roraima, sob o signo do desejo erótico. Nas mais antigas cosmogonias, o ímpeto genésico está na origem das coisas, e à sua força avassaladora ninguém escapa. É ele que faz de todos os seres, naturais ou sobrenaturais, incansáveis combatentes da eterna e universal guerra dos pinguelos.

Notas: 1. Apud Raphael Patai, "O Mito e o Homem Moderno", tradução de O.M. Cajado, SP, Cultrix, 1974, pág. 29;
2. Philip Wheelwright, "Metaphor & Reality", Bloomington, Indiana University Press, 1967, 3ª ed., pág. 133;
3. Ernst Robert Curtius, "Literatura Européia e Idade Média Latina", tradução de T. Cabral e P. Rónai, RJ, INL, 1957, pág. 98 e seguintes.

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