São Paulo, domingo, 31 de agosto de 1997
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Trabalho e exclusão

EMIR SADER
ESPECIAL PARA A FOLHA

A crise social nunca caminhou desacompanhada da crise da razão. Ao decidir que o tema central de seu 21º Congresso fosse "América Latina e Caribe - Por uma Sociedade sem Exclusões Nem Excluídos" (leia box nesta página), a Associação Latino-Americana de Sociologia estava, ao mesmo tempo, apontando para a crise social de fim-de-século no capitalismo contemporâneo e para a crise teórica que a acompanha.
Com a passagem do capitalismo a seu ciclo longo recessivo, desatou-se um processo de reorganização das formas de sociabilidade, que afetam centralmente o trabalho que, de forma central de integração social mediante contratos formais, passou a ser mecanismo de exclusão dos direitos básicos de cidadania. Ao falar de "exclusão", não se está pensando em desconexão de qualquer forma de vínculo social, mas basicamente de "exclusão de direitos". Os tempos de hegemonia neoliberal significam, do ponto de vista social, isso -"tempos de exclusão de direitos".
O tema da exclusão social ganhou espaço no pensamento social latino-americano a partir do segundo pós-Guerra, sob a forma da "teoria da marginalidade". Sua primeira expressão destacava o risco social para o capitalismo latino-americano daquelas massas que se aglomeravam na periferia das metrópoles do continente. Seu enfoque buscava explicar o fenômeno como uma disfuncionalidade, como um fenômeno de transição entre a modernidade urbana e o decadente atraso rural.
As teorias da modernização e sua metodologia funcionalista primaram durante algum tempo como tentativas de explicação de um fenômeno considerado marginal e efêmero.
O pensamento social crítico passou a abordar o fenômeno a partir das análises do sociólogo argentino José Nun e do peruano Anibal Quijano.
Embora com matizes diferenciados, os dois, partindo das análises de Marx em relação ao exército industrial de reserva, buscavam diferenciar as massas marginais desse contingente. Tratar-se-ia de uma superpopulação que não faria parte do exército de reserva -uma espécie de reservas que nunca jogam, que permanecem o jogo todo no banco de reservas, sem oscilar entre o exército ativo e o de reserva, conforme se alternavam os ciclos expansivo e recessivo do capitalismo. Formar-se-iam, assim, uma "massa marginal" e um "pólo marginal" da economia e da sociedade.
Para tratar de evitar a retomada das teses de sociedades duais -os "dois Brasis"-, que tanto mal haviam causado ao pensamento social latino-americano, buscava-se estabelecer os vínculos entre a massa marginal e as relações de mercado. Produzidas pelo mercado, as massas marginais participariam como mercado ou sob formas de exploração e subexploração indiretas. Essas massas seriam, para Quijano, a versão do exército industrial na fase monopolista do capitalismo.
A Teoria da Dependência, em sua versão marxista, na obra de Ruy Mauro Marini, aborda o tema da pauperização extrema por meio do conceito de "superexploração", como forma de combinação entre a extensão da jornada de trabalho e sua remuneração por baixo de seu valor. Dado que os trabalhadores dos países dependentes contam muito mais como produtores do que como consumidores, já que as mercadorias que produzem se realizam na esfera alta do consumo e no mercado externo, esse mecanismo de superexploração se torna funcional -embora contraditório, porque não deixa de "agudizar" a crise entre produção e consumo- às economias dependentes.
A década de 80 representou a transição para uma fase em que a retração das relações de assalariamento formal passaram a produzir, como fenômeno geral do capitalismo, a informalização e a precarização das relações de trabalho e, com elas, a produzir e reproduzir os mecanismos de exclusão social, conforme a análise, entre outros, de Robert Castel. Os que atribuem a causa do fenômeno à tecnologia -mediante a expressão "desemprego tecnológico"- fazem repousar nela um atributo que ela não possui.
Quando a luz elétrica foi inventada, foi introduzida a jornada noturna de trabalho. Seria o caso de dizer que "a luz elétrica -ou até Thomas Edson- seria a responsável por mecanismos de superexploração". A tecnologia possibilita aos homens produzirem mais com menos tempo de trabalho. Se isso vai se dar pela redução da jornada de trabalho ou pelo aumento do desemprego e pela exclusão social, será dito pelo resultado da luta social. Quem se apropria da tecnologia, a coloca em prática em função de seus interesses. Daí que a reivindicação sindical "trabalhar menos para que todos trabalhem" está na base da luta contra a exclusão social e da reconstrução democrática.
Não haverá superação da crise da razão no final do século, sem estar acompanhada de uma nova resolução da crise social atual, de novas formas de sociabilidade, na base das quais está uma nova divisão -nacional e internacional- do trabalho, uma nova forma de relação do homem com a natureza e consigo mesmo, mais justa, mais humana, mais solidária.

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