São Paulo, segunda-feira, 1 de setembro de 1997 |
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Filme une o sagrado e o profano
CECÍLIA SAYAD
"O que me leva a fazer cinema é poder estar mais perto da vida. Não tem como fazer isso em teatro, onde você lida necessariamente com a metáfora, com personagens, com mortos", disse a diretora em entrevista à Folha por telefone, do Rio de Janeiro. Em tempo: "Crede Mi" é um filme de ficção construído a partir de imagens documentais. Assim, a lenda do papa Gregório, narrada no livro "O Eleito", de Thomas Mann, é contada a partir de tomadas que Bia Lessa e Dany Roland fizeram durante oficinas de teatro realizadas em cinco cidades do Ceará, onde pessoas de 4 a 80 anos trabalharam com o texto do alemão. Há também cenas reais de nascimento e velório. "O homem criou uma cultura que, sob um determinado ponto de vista, o distanciou da vida. É uma coisa assustadora, estamos nos afastando dos códigos de referência que temos", afirma Lessa. À guisa de exemplo: "Outro dia fui assinar um documento. Estava na frente da pessoa, ela estava me vendo, mas tinha que autenticar a assinatura. Depois, tinha que autenticar o próprio cartório." Conclusão: "Há uma crise da representação, em todos os sentidos. Ninguém mais acredita no que o outro fala, a assinatura não tem mais significado. Atravessar esse mundaréu de códigos e tocar de novo na vida é algo que considero revolucionário." Foi por isso que a diretora optou, ao resolver trabalhar com o "O Eleito", por realizar pesquisas a partir de material humano, ignorando os livros. Segundo Lessa, ela e Roland queriam entrar em contato com as pessoas que traziam consigo a tradição que lhes interessava: os costumes milenares, as danças, a religiosidade. "No Ceará, encontramos exatamente essa questão. Lá, as pessoas lidam com Deus de forma cotidiana, sem muita submissão. É uma relação muito próxima -profana e sagrada ao mesmo tempo." Como assim? "Fui a uma casa que era lotada de quadros -tinha Maurício Mattar, Schwarzenneger, uma mistura de tudo. No centro da parede, havia um prego vazio. Perguntei de quem era o lugar de honra. A dona da casa me disse que era de Nossa Senhora, mas que a imagem estava guardada no armário, pois fazia meses que a santa não a obedecia." Texto e memória Além do texto de Mann, os diretores de "Crede Mi" trabalharam a memória das pessoas durante as oficinas que realizaram. "No início, o que as pessoas traziam eram imagens televisivas: Tom Cavalcante, esquetes etc. Lá pelo segundo dia, descobrimos que tínhamos que trabalhar com a memória: como o avô das pessoas contaria a história, qual a primeira música que elas tinham escutado, coisas desse tipo." Os "atores" acrescentaram falas ao texto de "O Eleito". Algumas delas, segundo Lessa, resumiam o conteúdo do livro. "Uma das frases em 'off', que aparece numa cena do mar, foi acrescentada ao texto de Mann por uma menina chamada Josefa. Diz: 'Quem é você, Deus, quem é você para me julgar?'. Acho isso genial! Ela vai à essência da obra: Deus está muito longe do homem para entender a dificuldade, a dramaticidade, a tragédia da vida." O filme se revela, então, uma tentativa de resgatar alguns elos perdidos, aproximando a arte e a vida, a vida e o homem, o homem e Deus. "O que me atraiu na lenda é que, nela, o maior dos pecadores é eleito papa. Ou seja, quanto mais humano, mais perto de Deus você está", diz Bia Lessa. Texto Anterior: Irmãos Caruso expõem diferenças Próximo Texto: Cinema novo acha sucessor Índice |
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