São Paulo, segunda-feira, 1 de setembro de 1997
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Cinema novo acha sucessor

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Fusão e movimento: desenvolvendo com virtuosismo esses dois conceitos, o filme "Crede Mi" leva o espectador a uma viagem sem precedentes no cinema brasileiro.
No início é o caos azul, correndo e se definindo em ondas, água, mar. Nesse movimento do azul se funde a imagem dos volteios da mão de um velho, como se das ondas ele criasse o mundo.
"E tem uma página que diz assim...", começa a voz do velho. Os erros de concordância, a pobreza evidente desse personagem desdentado, pelo efeito da sobreposição do mar e da solenidade da música de fundo, em vez de apontarem sua origem social, o transformam em amigo íntimo de Deus.
Com igual naturalidade com relação ao mito comporta-se o elenco de populares do interior do Ceará, onde o filme foi rodado.
São leigos que interpretam "O Eleito", de Thomas Mann, baseado numa lenda medieval européia sobre um casal de irmãos da realeza que comete incesto e cujo filho, abandonado ao mar, um dia retorna para se casar com a mãe.
Pelo amadorismo dos atores, as raízes do conto oral voltam a aparecer no romance de Mann e o popular emerge sobre o erudito.
A comparação com Glauber, nesse mar virando sertão e nessa gente imbuída de religiosidade, mostra que a proposta cinemanovista encontrou sucessor à altura.
Já não se trata apenas do projeto modernista nacional, de união de popular e erudito que Glauber tanto explorou em Villa-Lobos.
As sobreposições culturais de "Crede Mi" têm um sentido universalizador, graças às músicas e ao texto estrangeiros.
E o potencial mítico da sabedoria popular, explorado por Glauber como proposta de redenção dos oprimidos, reaparece com um sentido inverso. Os rostos maltratados, tomados em closes enviesados e invasivos, não se destinam a realçar o grotesco e a miséria, mas a reverter o conceito de beleza, pois encontram-se transfigurados de altivez e dignidade.
A câmera, solta e inquieta como no cinema novo, está apaixonada por esses falsos atores e compõe o melhor documentário possível sobre eles ao forçá-los à ficção. André Bazin chamava de "realismo do homem" o modo apaixonado como Renoir filmava seus atores. Raramente o cinema brasileiro foi tão realista como nessa obra inteiramente teatral, ficcional e manipulada que é "Crede Mi".
Lessa e Roland utilizam apenas uma câmera de vídeo Hi-8 (o material gravado foi depois transferido para película) e uma equipe técnica reduzida a eles dois.
A dupla percorreu 5.000 quilômetros no interior do Ceará, organizando e registrando workshops com as populações locais.
As 40 horas de registro foram depois picotadas e montadas como uma colcha de retalhos, graças ao que o caráter do mito ganhou expressão máxima. Os personagens não se fixam num único rosto: a identificação dos irmãos incestuosos se dá pela coroa (de flores, para a mulher, de lata, para o homem), que passa de cabeça para cabeça.
A velocidade da câmera e da montagem só encontra pausas quando a voz do velho interrompe a narrativa para repetir: "E tem uma página que diz assim...". Vira-se a página do romance, do conto oral. Tudo fundido acima das línguas e das nacionalidades.
Com essa língua universal, Lessa e Roland acabam de escrever uma das páginas mais inventivas do cinema brasileiro.

Filme: Crede Mi
Direção: Bia Lessa e Dany Roland
Quando: pré-estréia hoje (para convidados), estréia na sexta
Onde: CineSesc (r. Augusta, 2.075, tel. 011/282-0213)

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