São Paulo, terça-feira, 2 de setembro de 1997
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Carta de uma mãe de família

CACILDA TEIXEIRA DA COSTA

Por que tanta raiva, desobediência civil, arrogância e desamor?
Reflitam. A regulamentação da lei do aborto apenas torna possível a opção de interromper a gravidez, no caso de mulheres estupradas ou em risco de vida. Opção, aliás, que já existe para as mulheres ricas ou de classe média, que sempre puderam decidir sobre seus corpos e suas vidas. A não ser por restrições de caráter religioso, essas mulheres têm os filhos desejados, no número que consideram adequado à sua capacidade de criá-los.
Mas as pobres, além das vicissitudes de sua condição, depois de estupradas ou em risco de vida, será que não podem ter o direito de decidir sobre suas vidas? Por serem pobres, numa situação tão desesperadora, em vez de receber consolo, devem ser castigadas por uma sociedade que parece odiá-las?
Aos bispos, padres e ministros também não interessa saber se elas têm ou não condições de criar esse filho indesejado, que lhes veio por meio da maior violência e brutalidade que uma mulher pode sofrer? Pergunto-me quem se importa com isso nas discussões teológicas das encíclicas, redigidas por celibatários que nunca souberam o que é parir, amamentar, cuidar de uma criança e, sobretudo, responsabilizar-se por ela.
Afinal, senhores, quem vai criar esse filho? Toda mulher conhece (e as mães conhecem bem) a energia, a responsabilidade, a preocupação e o trabalho constante que um filho muito querido representa. E se essa mulher que foi estuprada (muitas vezes por tios, padrastos ou pelo próprio pai) não tiver condições psicológicas, materiais ou de saúde para criá-lo e educá-lo sozinha? Tanto faz?
A questão para os que se opõem à regulamentação da lei parece terminar aí. Não lhes importam os problemas subsequentes, já que serão da responsabilidade exclusiva das pobres mães, geralmente adolescentes.
É evidente que aquelas que se sentem capacitadas e desejam seu bebê -apesar de ser filho de alguém que as violentou tão terrivelmente e de terem de criá-lo sozinhas, sem contar com o importantíssimo apoio e a colaboração de um companheiro- têm o direito de levar adiante a gravidez e de tomar a si essa responsabilidade (além da admiração de todos nós).
Mas e aquelas que não têm condições mínimas, nem psicológicas nem materiais, de criar e educar esse filho -que será rejeitado, mal-amado, muitas vezes abandonado e, como consequência, explorado e abusado de todas as maneiras que conhecemos?
A lei decide que abortar é crime. Ter um filho sem condições de criá-lo não é? Não constitui um crime enorme e gravíssimo a quantidade de crianças jogadas na rua, esmolando, sofrendo, drogando-se, morrendo e sendo mortas?
Que grande hipocrisia é essa de posicionar-se contra a normatização da lei e dizer-se "a favor da vida", não admitindo que as mulheres pobres tenham o direito de optar dignamente quanto às suas próprias vidas?
É básico que às responsabilidades devam corresponder direitos. Se não lhes é dado o direito de optar, como poderão ser responsabilizadas por abandonar física ou psicologicamente esses filhos?
Em nome de que (pois me parece injusto invocar para isso o nome de Deus, que é pai e nos ama) uma sociedade volta-se tão ferozmente contra mulheres humilhadas, pobres, violentadas, doentes e lhes impõe mais essa arbitrariedade?
Não seria mais humano voltar aos ensinamentos de Jesus (que, de acordo com um teólogo contemporâneo, foi o primeiro e o último amigo das mulheres em toda a história do cristianismo) e ter por elas compaixão? E também não seria mais justo que todos aceitassem a lei, em vez de incitar médicos e enfermeiras a hostilizar e humilhar ainda mais essas moças, muitas vezes meninas, num momento tão triste e sofrido?
Tenham compaixão, senhores, e certamente receberão o mesmo quando se depararem com o amor e a luz divina. "Sursum corda"!

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