São Paulo, quinta-feira, 4 de setembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Acertando as contas

MOACYR SCLIAR

Um mês antes do casamento ela decidiu: não podia mais levar adiante aquela encenação. Não fora feita para a vida conjugal. Não queria atrelar a sua existência à monotonia de uma relação convencional. Em vão os pais e os amigos tentaram demovê-la: mostrava-se irredutível. Agora que optara pela liberdade, nada a faria voltar atrás.
O noivo ficou desesperado. Afinal, o namoro vinha desde a infância. Nunca pensara em outra -e, de repente, era sumariamente rejeitado. Coisa para arrasar o mais forte dos homens.
Passado o golpe inicial, sua frustração se converteu em raiva. Ela queria voltar atrás? Então voltariam atrás em tudo. Queria as fotos, as cartas, os videoteipes. Ah, sim, e os presentes. Que não eram poucos: há anos ele a vinha presenteando com coisas para o futuro lar.
Ela achou a demanda justa. Sim, gostaria de ficar com as fotos, e tudo o mais, a título de recordação, mas reconhecia os direitos dele. Quanto aos presentes, pediu um dia para organizar tudo.
Começou de manhã cedo, revisando os objetos um a um. E cada vez que o fazia, suspirava. O forno de microondas -que belo forno de microondas! Último modelo, capaz de assar e de gratinar, belíssimo aparelho. E o televisor -que maravilha, uma tela enorme, com controle remoto sofisticadíssimo, só faltava falar. E a máquina de lavar pratos, então, que prodígio, completamente automática. Tinham discutido um bocado, por causa daquela máquina; ela considerava tal equipamento desnecessário, via uma certa poesia no ato de lavar pratos, uma coisa simbólica, um ritual de humildade e até de purificação. Mas ele nem ouvira tais ponderações: mulher minha não lava pratos, garantira, e no dia seguinte ali estava o furgão da loja entregando a máquina.
Agora teria de devolver tudo. Teria mesmo?
Num impulso, correu para o telefone. Ia ligar para ele, ia dizer que pensara melhor e que estava disposta a reconsiderar. Mas ao pegar o aparelho, lembrou-se: o telefone também era dele. Trouxera-o de uma viagem ao Paraguai.
Com um suspiro, pousou o fone no suporte. Não, não poderia usar o telefone. Mas sempre poderia escrever-lhe uma carta. Caneta ela ainda tinha, papel ela ainda tinha. Não muito, mas tinha.

O escritor Moacyr Scliar escreve nesta coluna, às quintas-feiras, um texto de ficção sobre notícias publicadas no jornal.

Texto Anterior: Brasil terá novo serviço de biopsia de tumor no olho
Próximo Texto: Abortamento
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.