São Paulo, quinta-feira, 4 de setembro de 1997
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Abortamento

BUSSÂMARA NEME

Na condição de coordenador materno-infantil do Ministério da Saúde, durante a gestão do ex-ministro e professor Adib Jatene, tive a oportunidade de enviar ao Congresso parecer relacionado à controvertida questão da prática do abortamento em nosso país.
Desde 1940 o Código Penal brasileiro prevê a não-punição do abortamento, praticado por médico, em duas situações: se não há outro meio de salvar a vida da gestante ou se a gravidez resulta de estupro.
Pareceu-me serem úteis algumas ponderações técnico-médicas relacionadas à questão.
Ao admitir a não-punição do abortamento quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, os legisladores pretenderam resguardar a vida materna, embora sacrificando a vida fetal.
Militando na clínica tocoginecológica há 57 anos e na condição de chefe de diversos serviços oficiais de obstetrícia no Estado de São Paulo, creio ser indispensável lembrar que, atualmente, em face dos progressos ocorridos na prática médica, são absolutamente excepcionais as patologias clínicas associadas à prenhez em que a morte materna ocorrerá.
Eventualmente, o que pode ocorrer seria apenas algum encurtamento da sobrevida da paciente. Daí porque, nesses casos de ocorrência excepcional, a prática do abortamento, ao não impedir a morte programada e inevitável da gestante, não se justificaria, vez que acarreta o sacrifício da vida fetal. De tanto conviver com gestantes, estou seguro de que, nessas eventualidades, a própria paciente se insurgirá contra a prática do abortamento.
Essa afirmação se fundamenta na vivência de alguns e excepcionais casos em que tive a necessidade de enfrentar a sua solução.
No que importa à não-punibilidade médica pelo abortamento em casos de estupro, a legislação procurou resguardar a gestante do intenso trauma psíquico, não lhe impondo o sacrifício de carregar no ventre o concepto indesejado de seu violador.
Em tais situações, as gestantes carentes de recursos econômicos, em desespero de causa, lançam mão de meios inadequados para interromper a gestação indesejada e, com frequência, ocorrem complicações infecciosas e/ou traumáticas. A propósito devo lembrar ser o abortamento infectado uma das principais causas de morte materna em nosso país.
A nosso ver, a ocorrência do estupro deveria ser registrada de imediato em postos policiais, a fim de evitar que sejam praticadas interrupções de gestação em situações de simples arrependimento de compartilhado convívio sexual.
Não se deve esquecer que existe, atualmente, metodologia terapêutica que impede a ocorrência de prenhez, quando administrada em até 24 horas após o estupro.
Sobre a não-punibilidade para a prática do abortamento, importa lembrar ainda que a moderna propedêutica fetal tem permitido o diagnóstico precoce da presença de conceptos vivos intra-útero de vida orgânica incompatível após o seu nascimento (anencefalia, por exemplo).
Nessas condições, permito-me sugerir aos legisladores, na vigência desses casos, a ampliação das atuais indicações para a prática não-punitiva do abortamento.
Finalmente, parece-me injusta a legislação quando prevê a criminalização de gestante que provocou ou permitiu que se lhe praticasse o abortamento.
Em geral, ao optar por essa solução, a gestante angustiada encontra-se em estado emocional de alienação mental e, nessas condições, não me parece justa a lei que a criminalize.

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