São Paulo, sábado, 6 de setembro de 1997
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Pedestal sem estátua

RUBENS RICUPERO

Foi assim que vi definida a obra de um escritor cujos livros pareciam preparar lentamente uma culminância que nunca se materializou.
É também o sentimento que se tem ao tentar dar balanço nos 175 anos de independência e nos quase 500 de existência do Brasil.
Não se trata apenas do inacabado da obra. Todo país é, por definição, inacabado, pois cada geração, cada vida que nasce, renova incessantemente a história e a face da terra. É mais a sensação de frustração, de atrofia, de não conseguir passar do tempo de semear para o de colher.
Nosso duplo pecado original foi o latifúndio e a escravidão. A independência não destruiu nem um, nem o outro. Introduziu, contudo, o projeto de José Bonifácio do país legal, monárquico e parlamentar, em tensão constante com o país real, da grande propriedade escravocrata.
Joaquim Nabuco viu bem o problema. O Brasil era, para ele, uma nação sem povo, pois um povo é formado de cidadãos, não de escravos.
A abolição, além de tardia, deixou a tarefa pela metade. Ao contrário do desejado por Nabuco, ela não foi completada pela reforma agrária.
República, Revolução de 30, vicissitudes políticas recentes, não alteraram, no fundamental, a excessiva concentração da riqueza e da renda. Nessas condições, a panacéia dos liberais do Império e da República, o voto livre, secreto, universal, revelou-se, quando conquistado, condição necessária, mas não suficiente.
Sem acesso à terra, a outros recursos, à educação, à cultura, à informação, dependentes do paternalismo rural ou do populismo urbano, os eleitores só de forma parcial e incompleta se converteram em cidadãos conscientes e participantes.
Os abismos de desigualdade criam diferenças não de grau, mas de essência. O Brasil se parece ao clássico "Metrópolis", de Fritz Lang. Uma raça de servos se exaure no subsolo para que, na superfície, os afortunados gozem a vida. Um microcosmo disso é o Itamaraty de Brasília. Uma rápida viagem de elevador separa as festas diplomáticas dos salões e jardins do terceiro andar, reino da "calma, ordem, luxo e volúpia" das oficinas e garagens dos porões, domínio, como na Rússia pré-1917, do "povo escuro", da gente trabalhadora e humilde.
Integrar esses dois mundos para edificar uma nação forte e autônoma, próspera e justa, foi o sonho do projeto modernizador a partir de 1922. Desde então, não obstante sacrifícios e sofrimentos, "crescemos, mas não amadurecemos, avançamos, mas obliquamente, isto é, numa direção que não nos leva à meta", como disse o pensador russo Chaadaev.
O pior é que, antes de completar-se, o projeto integrador começa a ser sub-repticiamente abandonado. A indústria deixa de gerar emprego, os entraves da reforma agrária impedem absorver gente na agricultura. Alguns ousam pensar o impensável: pressionada pela competição, a economia terá de resignar-se a não integrar os 30 ou 40 milhões de pobres entre os pobres, de marginalizados ou sem emprego condenados permanentemente às trevas exteriores da exclusão.
Na véspera do Sete de Setembro, olhamos para um pedestal vazio. Ele está pronto, fruto do trabalho de gerações de brasileiros ao longo de cinco séculos e, ultimamente, da estabilização trazida pelo Real. Só será digno dele um monumento que inclua os excluídos, que integre os marginalizados. Algo que torne próximos os distantes, familiar o que nos é estranho. Que elimine para sempre nosso espanto e horror diante do formigueiro humano da mina de Carajás, da desumanidade dos presos nus e amontoados em cárceres da periferia como no infecto navio negreiro de Rugendas.
Amanhã de novo lembraremos comovidos os versos de Castro Alves: "Auriverde pendão de minha terra, que a brisa do Brasil beija e balança." Mas, logo em seguida, o poeta diz: "Antes te houvessem roto na batalha, que servires a um povo de mortalha!"
Recitamos os versos, mas será que atentamos no significado? E, se o compreendemos, quantos de nós aceitam a afirmação: que é melhor ver a pátria derrotada em guerra do que usá-la para promover crimes, injustiças, violações de direitos humanos?
Com a intuição do poeta, Castro Alves percebeu que a pátria só tem razão de ser se for mãe, não madrasta de seus filhos, e de todos, não de alguns. Outros países, de distintos valores e níveis históricos, podem ter outras prioridades. A nossa, porém, só pode ser uma, singular e exclusiva, condição de tudo o mais, única justificativa de ser brasileiro neste fim-de-século: contribuir para superar de uma vez por todas a insuportável e monstruosa herança da desigualdade.

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