São Paulo, sábado, 6 de setembro de 1997
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Empresas que vendem futuro

PAUL SINGER

Os clientes da Encol e da Golden Cross ainda estão privados dos bens e serviços que adquiriram, angustiados pela incerteza quanto à recuperação dos valores a que fazem jus. O mesmo passaram os correntistas dos diversos bancos que recentemente foram em parte liquidados e em parte fundidos a outras instituições.
O que todos esses casos têm em comum é que se trata da falência de empresas que se dedicam a vender futuro. Incorporadoras de imóveis, companhias de seguro (inclusive de saúde) e bancos recebem pagamentos de clientes em troca da entrega futura dos bens e serviços comprados. No caso de incorporadoras, a entrega tem data contratualmente definida. Nos outros casos, a data da entrega é condicional; depende da ocorrência (sempre imprevisível) de sinistro ou das necessidades dos depositantes em contas à vista e a prazo.
Outra característica das empresas que vendem futuro é que elas trabalham com o capital dos clientes. É verdade que elas têm capital próprio e que, em alguns casos, esse capital próprio tem de guardar alguma proporção com o seu movimento. Mas o que importa é que nesse tipo de empresa o capital próprio é sempre, de longe, insuficiente para garantir o direito dos clientes na hipótese de perdas financeiras.
Os exemplos recentes, citados acima, de falências (no sentido essencial de transferência de perdas aos clientes) ilustram claramente o fato. Bancos, seguradoras e incorporadoras manejam grandes capitais formados pelos fluxos de pagamentos regulares de muitos milhares de clientes, dos quais só uma parte é desembolsada imediatamente para o cumprimento de seus compromissos. O resto é aplicado em mercados financeiros infelizmente desregulados e dominados pela especulação.
Quando as aplicações financeiras apresentam retornos positivos, estes incrementam o lucro da empresa que vende futuro. Se os retornos são negativos, em tese, a empresa deveria deduzi-los de seu lucro e do seu capital próprio. Esgotado o capital próprio, a empresa estaria em bancarrota.
Como sabemos, a prática difere muito dessa teoria. Como o mercado financeiro oscila muito, perdas de hoje podem ser compensadas por ganhos de amanhã, o que leva empresas em tese falidas a ampliar suas vendas de futuro, expandindo seu fluxo de caixa para fazer mais aplicações. Se a sorte ajudar, as perdas são compensadas e a bancarrota (de que ninguém tomou conhecimento) é levantada. Se não ajudar, é sempre possível aumentar mais a venda futura, inclusive seduzindo a clientela com preços menores, melhores condições de pagamento e outros agrados.
Se essa não é a regra, tampouco é a exceção. Falências de empresas que vendem futuro acontecem, e quase sempre se descobre que elas ocultaram por anos a bancarrota, ampliando com isso o número de prejudicados. Uma alternativa que oferece muito mais segurança aos usuários é a cooperativa de consumo, em que os próprios consumidores controlam a empresa e, assim, controlam mais seu futuro.
Cooperativas de crédito, cooperativas de habitação e cooperativas de saúde existem em bom número e muito raramente quebram, pois os seus administradores 1) nada têm a ganhar com as sobras financeiras de suas aplicações e 2) têm de prestar contas aos cooperados, tão frequente e minuciosamente quanto estes o desejarem. As cooperativas de serviços futuros também aplicam os capitais formados pelos pagamentos dos cooperados, mas podem fazê-lo num mercado mais restrito, formado essencialmente por cooperativas de consumo e de produção, que seria muito menos volúvel, proporcionando ganhos moderados, porém, constantes.
Sempre se pode pensar em esquemas de vigilância pública sobre empresas que vendem futuro, mas a universalidade dos problemas -crises bancárias e imobiliárias ocorrem na maioria dos países- leva a crer que tais esquemas deixam muitíssimo a desejar. A própria lógica capitalista de que qualquer empreendimento deve ser de quem fornece os recursos indica que, ao menos nesse caso, a cooperativa é uma solução melhor.

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