São Paulo, sábado, 6 de setembro de 1997
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No Circo da Notícia unem-se tablóides e jornalões

ALBERTO DINES
COLUNISTA DA FOLHA

Lady Di é cognome abreviado pelos tablóides, para atender ao tamanho reduzido das suas capas. Seis letras, um espaço, sete batidas (segundo o jargão) cabem perfeitamente ao lado da foto esguia e a notícia provocadora.
O curto apelido foi exportado e adotado pela grande imprensa mundial. Tal como a rotina de manter Diana Spencer na primeira página sob qualquer pretexto. Ou nenhum pretexto, desde que faltasse um assunto picante para compor a receita de sucesso. "Cover girl", com sangue e olhos azuis, baixaria nobilitada "By Appointment of Her Majesty". A morte dos reis move as páginas da história, tempos mudam de nome quando coroas trocam de cabeça. Ingleses, mestres dos mitos, produziram o período elizabetano, vitoriano, eduardiano. Hoje, depois do enterro da princesa Diana de Gales, ao recolher as lonas da temporada de verão do Grande Circo Mundial da Mídia, alguém terá que inventar uma chancela para essas décadas bulhentas e viciosas, em que se confundem num mesmo papel glória e inglória, fama e difamação, celebração e profanação.
O mundo não muda. A natureza, instintos e o implacável mecanismo dos efeitos perversos permanecem iguais. Quando John Lydgate (1350-1451) escreveu sobre a queda dos príncipes, inspirava-se nas premonições de Boccaccio sobre as inevitáveis catástrofes que aguardam os muito afortunados. Abria o caminho para Sackville, Shakespeare, Marlowe e as sagas de tragédias históricas. Seguimos a mesma trilha com um valor agregado, a saturação, mix de estridência e volatilidade, com grandes doses de mediocridade e nenhuma de senso trágico. A Sociedade-Espetáculo, que armou o cenário para a imolação de Diana e agora convoca Elton John para os funerais em Westminster é constituída da mesma matéria da Era Tudor. Com o adendo da magnificação. Uma expandiu o humanismo renascentista, a outra precedeu a globalização nivelando a humanidade. Por baixo.
Diana encarna o fim da distinção entre o grande jornalismo e o pequeno jornalismo. Aristocrata e plebéia, requintada e desnorteada, criou o canal que ligou e assemelhou a imprensa de qualidade e a imprensa sem qualidade. Abrigada no olimpo milenar onde reis e príncipes proclamaram dúvidas e ambições, mas reagindo como personagem de telenovela, Diana deu status a esse clamor que percorre shoppings, anúncios, boates e comícios -eu preciso ser feliz! Como disse Mathew Parris, do "Times" de Londres: "Os jornais de prestígio só esperam os tablóides darem a primeira mordida para também avançar sobre a carniça". A princesinha do conto de fadas com o seu charme e desventuras ajudou a borrar o conceito de que jornalismo é serviço público, processo de elevação cultural garantido pelas constituições em benefício da cidadania. Em seu lugar foi entronizado um bruxo devorador de intimidades chamado Mercado, que mascara todas as vilezas com seu abominável moto: "Viver é vender".
Na exaltação da frivolidade, igualaram-se tablóides e jornalões, paparazzi ou fotógrafos terceirizados, colunas mundanas e seções internacionais. Diana personificou e escancarou -em vida e na morte- o tal sistema mediático que está maculando a mais preciosa e mais frágil das instituições democráticas: a Imprensa.
Com Diana flagra-se um processo de autodestruição do ofício do narrador de fatos. O modo de fazer jornalismo hoje compromete vitalmente o sentido do que se faz. Não é o jornalismo que está em questão, são as premissas daqueles que estabelecem as regras do novo jogo jornalístico -mercenário, superficial, dramatizado, inconsequente. Torpe. A excelência profissional está sintetizada nos três "s" do novo manual do redator globalizado: "Short, Simple and Stupid".
A imprensa virou notícia, um dos dois está doente. A crise de identidade em que se debate aquele que foi chamado de Quarto Poder (hoje suplantado pelas pesquisas de opinião) escancara-se nas edições diárias pelo mundo. Não disfarçam a ambiguidade e a esquizofrenia de um processo aperfeiçoado ao longo dos séculos, dirigido ao esclarecimento, hoje corrompido pelas lantejoulas do showbizz, pela promiscuidade com outros negócios e pela onipotência dos interesses políticos. Não adianta falar em ética num circuito posto a funcionar em altíssima velocidade e, por isso, incapaz de escrúpulos (além das formalidades mecânicas de "ouvir os dois lados"). Ética sem dor, sem abdicar de privilégios e ganhos, codificada na memória do computador e declamada sem angústias, é a charge da ética, maneirismo banalizado e corrompidos pela reiteração do próprio Sistema.
No frisson da "Belle Époque", há cem anos, quando a tecnologia abriu o campo para as grandes tiragens, a imprensa na Europa e na América atolou-se em episódios diferentes, igualmente tenebrosos: os pasquins da direita francesa (em pequeno formato) montaram o linchamento do capitão Alfred Dreyfus, e a "imprensa amarela" (por causa da cor do caderno de quadrinhos) de William Randolph Hearst inventou a guerra contra a Espanha para abocanhar Cuba.
Quem tirou Dreyfus da Ilha do Diabo foram os grandes jornais liberais franceses ("Figaro" e "L'Aurore"), e quem estabeleceu os padrões diferenciadores do estilo Hearst foi o "New York Times", emblema secular e mundial da imprensa de qualidade.
A mensagem é clara: cabe à imprensa -e só à imprensa- a tarefa de resgatar a Instituição do Sistema que a aprisiona e deforma. Aqui vale a sentença de D.Pedro 2º, quando do empastelamento de "A República" (1870): "Os abusos da Imprensa corrigem-se pela própria imprensa".
Nada de auto-regulamentações corporativas que, em última análise, não passam de produtos do próprio Sistema. Nada de ardilosas manobras como a que pretende o reintrodutor do tabloidismo político, o senador Requião, em novo acesso de vedetismo, pela sua inepta regulamentação do direito de resposta -Diana pode agora reclamar espaço igual para a sua réplica?
Nada de diabolizações farisaicas contra "os outros" para eximir-se de responsabilidades. Vilões e heróis estão lado a lado, encobrindo-se e justificando-se, peças de um mecanismo indiferenciado.
O tabloidismo, hoje colocado no banco dos réus, nada tem a ver com o tamanho do jornal, refere-se ao tamanho da alma de quem faz esse tipo de jornalismo. Ou manipula os que o praticam. Alguns dos melhores jornais do mundo são em formato pequeno, caso do espanhol "El País", do "Público" e "Diário de Notícias" de Lisboa, dos argentinos "El Clarín" e "Página 12". Temos tablóides no sul do país, de excelente nível e comportamento. Se os tablóides não são sinônimo da perversão, mas converteram-se em símbolo da perversidade de uma época, em que ponto do seu percurso perdeu-se a mídia? A mídia perdeu-se quando perdeu o afinco pela qualidade, quando trocou o zelo pelo desmazelo. Quando optou pelo furor de distinguir-se pela febre do furo. A mídia perdeu-se na incapacidade de perceber que ela própria, na sua evolução, decretou que o furo está furado. Sem competência ou apetite intelectual para singularizar-se, a mídia esfalfa-se numa corrida cujo prêmio maior é a morte de seus personagens. E, em seguida, as exéquias. Vale a pena? Shakespeare fez Romeu e Julieta fingir um pacto de morte que, por um pequeno desacerto, acabou consumado. Era teatro. Champanhes geladas esperavam Diana Spencer e Dodi al Fayed após o jantar no Ritz -não chegaram lá. Estatelaram-se num túnel da Cidade-Luz, quase ao vivo, no picadeiro do Circo da Notícia. Amanhã tem mais.

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