São Paulo, sábado, 6 de setembro de 1997
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Cartas de Glauber são tristes como seu final

ALAIN FRESNOT
ESPECIAL PARA A FOLHA

O correio norte-americano teve uma queda de 30% este ano em função do aumento do uso do e-mail. Essa tendência deve prosseguir, e isso reduzirá o número de livros de correspondências publicados no futuro.
Atenção, gênios e não gênios, imprimam vossos e-mails. A posteridade agradece.
Curiosamente, com o aumento da facilidade e instantaneidade da comunicação há um reforço na opacidade. Estas reflexões me ocorrem em função da publicação da correspondência de Glauber Rocha, calhamaço de 794 páginas.
O prazer de ler cartas alheias tem algo de voyeur. A carta ao ser escrita para um único leitor, amigo em geral, permite uma franqueza e liberdade que a ficção ou o jornalismo raramente suportam.
As cartas vão e vêm, de 56 a 81, do precoce início ao prematuro fim.
Acompanhar o raciocínio, reflexões e reações de uma pessoa já é em si interessante, e com Glauber é satisfação garantida. É uma extraordinária reunião de informações, análises, delírios e sensações.
Evidentemente a efervescência geral dos anos 60 correspondia e facilitava a inquietação e militância dos jovens. A "turma" do cinema novo -Nelson Pereira, Glauber, Leon Hirszman- não pensava o cinema brasileiro, pensava o Brasil.
Glauber quer seriamente se candidatar a governador da Bahia, Leon pensa lançar um jornal nacional. Glauber propõe a criação de um partido político.
Nelson, um pouco mais velho, tem a sabedoria de se preservar. Glauber e Leon tinham liderança para que, em diversos momentos, estudassem a possibilidade de abandonar o cinema por causas mais "importantes".
Quem os conheceu sabe que ambos tinham força, coragem e curiosidade existencial; não poderia um HIV qualquer impedir sua sede de viver. Curiosamente, não há troca de correspondência entre os dois.
É inimaginável hoje em dia a simplicidade com que Glauber tentava produzir filmes para os colegas. Teria o talento algo a ver com desprendimento, generosidade?
Os primeiros anos são de construção e crescimento. Os sucessos sucessivos, as festas nos festivais internacionais dão a Glauber uma segurança e prestígio que a ditadura envergonhada de 64 a 68 não consegue ainda abalar. Mas há um ponto de inflexão. O cinema brasileiro é um Deus infanticida que se alimenta de seus filhos.
Em 1970, mais ou menos, algo se rompe. Como disse o crítico Paulo Emílio Sales Gomes, pai e guru, o ponto fraco do Glauber era o Brasil. As cartas são extremamente reveladoras das dificuldades com que ele se depara; começa uma longa e interminável agonia de projetos interrompidos.
O livro se transforma num livro triste, absurdamente triste. Triste porque sabemos de antemão os finais, o dele e o da esperança de uma geração de criar um forte cinema nacional.
Ao longo das cartas acompanhamos o aumento da cota de tela do cinema brasileiro -42 dias ano/sala em 1959, 112 em 70. (Hoje são 35).
Glauber vai aos poucos se dando conta de sua fragilidade no exílio. Tenta compor com os cubanos, com os russos, com os americanos.
As cartas se sucedem, revelando o combate desigual entre um herói solitário contra os dragões da maldade. Para cada "alvo" tenta vender sues projetos, procurando fazer o discurso que supõe apropriado. Mais marxista que os marxistas, procurando manter status de pensador, teórico onisciente e virtuose, muitas vezes ingenuamente.
Várias de suas cartas são patéticos pedidos de socorro, frequentemente são de um puxa-saquismo atroz, travestido de teoria política ou cinematográfica. Glauber inclui ou exclui colegas e/ou filmes da "marca" cinema novo em função das simpatias e alianças táticas do momento. Seria cômico se não fosse trágico.
As cartas que faltam, as respostas não recebidas são também significativas. Há várias trocas de correspondência com assuntos seguidos, mas há também diálogos longos, da maior importância, em que só "ouvimos" o Glauber. A sensação é a mesma de ver uma pessoa falando ao telefone, tentamos deduzir a conversa pelas respostas, imaginamos os "planos" que estão faltando.
Nos poucos momentos de paz interior, em que suas cartas não são funcionais, ressurge a inteligência, a sensibilidade, o humanismo e a bondade essenciais.
As cartas que descrevem sua visita a Moscou são riquíssimas, de lucidez e clareza raras. Estes privilegiados correspondentes são seus poucos amigos de infância, a família, Paulo Emílio mais uma vez. O resto é guerra, pau puro. Desespero e crueldade.
Há preciosidades como a carta de João Ubaldo, de 11 de novembro de 1963, que dá conta de teste vocacional feito para conseguir uma bolsa nos EUA.
O volume de correspondência é enorme; o período coberto, muito grande. Como na Bíblia, em Glauber cada um vai achar o que procura. Há cartas contra a intervenção do Estado, também farto material defendendo a presença do Estado, não só defendendo a Embrafilme, chamada de Cinebrás, como em carta de 79 a Celso Amorim, diretor geral da Embrafilme.
"Gostaria que a Embrafilme desse 200.000,00 a Lima Barreto, mas que sue projeto não seja julgado (...) que ele volte para o Rio para filmar "A Triste Vida de Policarpo Quaresma", com todos os meios e toda cobertura (...) Mário Peixoto mesma coisa: arranjar um produtor executivo (...) basta lhe dar 50 mil metros de filme virgem (...) gostaria inclusive de, na prática, cuidar desses três filmes, desses três grandes diretores (Lima Barreto, Mário Peixoto e Humberto Mauro), para que eles "não morram frustrados."
Glauber prevê coisas, critica os filmes dos amigos com clareza, impiedosamente. Não tendo medo de bater de frente, bateu.
A leitura é fundamental para quem se interessa por nossa cultura, nosso cinema. Para mim, fica a sensação da enormidade do esforço e do talento subutilizados.
É a odisséia desse jovem baiano de Vitória da Conquista, poucas vitórias, mas a conquista mais do que merecida de posição importante na triste história de nosso cinema. Buru... cavador... descanse em paz...

Livro: Cartas ao Mundo
Autor: Glauber Rocha
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 34 (794 págs.)

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