São Paulo, sábado, 6 de setembro de 1997
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Obras trazem mundo sem saída de Rubem Fonseca

FERNANDO BONASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Você tenta se virar. Até trabalha. Se pudesse, bem que pagava impostos em dia, não é mesmo? É prudente, não joga muito saldo do seu cartão de crédito para a próxima fatura. Sorri quando está sendo filmado. Comove-se na medida de manter-se com algum senso de humor, mesmo encarando aqueles moleques esverdeados do sinal.
Põe a aguinha semanal nas plantas. Adota tartarugas marinhas. Separa governo de Estado, raiva de antipatia, amizade de desejo. Poucas vezes avançou mais que um sorriso lúbrico fora do casamento.
Você liga sua TV e a salsicharia eletrônica começa a despejar amores perfeitos, economistas bem-intencionados, filatelistas, exibicionistas, estrategistas, canalhas empedernidos, diplomatas esquecidos, burocratas, prostitutas recuperadas, alpinistas sociais, comunidades extintas, punguistas, atores cegos, bailarinas pernetas, intelectuais bolsistas, fascistas civilizados, paulistas da gema e por aí vai.
Você quase entra em surto, bolhas de enxofre surgem naquela fina película que envolve seu cérebro. Você acredita que vai começar a vomitar toda a bile rala do seu espírito, acha que chegou ao limite de suas forças, pensa em desistir. É o fim. Um urro, então a suave desagregação da morte...
Mas, prezado cidadão brasileiro, muita calma. Fique sabendo que a sua desolação pode não ser tão terminal quanto lhe parece. Ela pode piorar muito!
É que chegou às livrarias uma preciosa caixa com dois livros: a novela "E do Meio do Mundo Prostituto Só Amores Guardei ao Meu Charuto" e o volume de contos "Histórias de Amor", ambos de Rubem Fonseca.
Porque não tem refresco. Não pense que os recursos de um dos maiores escritores brasileiros vão fazer você compreender o que quer que seja do que o cerca. Vão, pelo contrário, atrapalhar bastante o bem-estar possível que você eventualmente procura.
Aliás, isso não é de hoje...
O personagem/escritor de "Mundo Prostituto", Gustavo Flávio (já aparecido em Bufo & Spallanzani, em 86), logo após sofrer, digamos, um "trauma amoroso", resolve resgatar um projeto antigo e escrever um livro chamado "Foder", sobre a importância e as qualidades do negócio. O livro, diferente de sua obra anterior, fracassa.
O motivo? Se na época em que o concebeu, o escritor/personagem o tivesse redigido, talvez a força de seu título e conteúdo viessem a impressionar leitores.
Mas esse mundo de meu Deus mudou e quando Gustavo Flávio o realiza, está longe de incomodar a qualquer de nós, espectadores da atrocidade diária. A trajetória de Rubem Fonseca, no entanto, é o inverso que a de seu personagem.
Quando aparecem os contos de "Os Prisioneiros", lançado em 1963, começa a se desenhar na nossa literatura, o Brasil moderno. Mas... Espere um pouco. Não falo do "Brasil moderno" que desejaríamos ser, mas esse que somos.
Sim, esse da destilada canalhice, da mistura de alta tecnologia e alta miséria, da burrice e sordidez transformadas em valores no "jogo civilizatório" local.
Quer dizer: não adianta, meu amigo, você está condenado a este Brasil que o envolve, mesmo comprando um visto no despachante.
Não vou ficar contando o que você pode ler lá dentro. Convencendo-o de que não dá para parar antes do fim e como, depois, você ainda vai ficar esfregando as capas, tentando fazer a coisa continuar.
Há uma série de personagens e articulações que vem de outros livros do escritor e que, nesse momento, servem para aumentar o prazer de quem já leu algum antes.
Na verdade, não interessa se você já leu Rubem Fonseca; só está na hora de começar. As coisas que se passam nessa caixinha bastam a si mesmas e são um bom começo.

Livros: Histórias de Amor e E do Meio do Mundo Prostituto só Amores Guardei ao Meu Charuto
Autor: Rubem Fonseca
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 26, estojo com dois livros (135 págs. e 112 págs., respectivamente)

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