São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997 |
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A síndrome da ameaça inexistente
ROBERTO CAMPOS Estrangeiros que nos visitam e que se esforçam por compreender a cultura nacional impressionam-se com o que chamam de "síndrome das ameaças inexistentes". Acham estranho que a mídia brasileira e a classe política se preocupem tanto com as ameaças do neoliberalismo e do globalismo. Recente livro francês descreveu as mudanças trazidas por ambos os movimentos como "l'horreur économique".O fato de que esse livro, de nível intelectual comparável aos manifestos da UNE, se transformou em best-seller documenta a irreparável decadência da cultura francesa. A palavra mágica que une numa postura antimudancista elementos tão díspares como os teólogos da libertação, o bloco de oposição das esquerdas e a burguesia nacional protecionista é uma só: "exclusão". O globalismo seria responsável pela "exclusão" externa (entre países), e o neoliberalismo, pela "exclusão" interna (entre pessoas). Segundo esses neoconservadores, a globalização, trazida pela vitória da economia de mercado sobre a planificação socialista, consolidaria a vantagem das economias industriais tecnologicamente avançadas. Seria o império das multinacionais movidas pela lógica do lucro. Sem as defesas criadas pelo governo intervencionista e pelo protecionismo, os países subdesenvolvidos chafurdariam cada vez mais no subdesenvolvimento relativo. Paralelamente, o neoliberalismo, pregando a redução do tamanho do Estado e de seu intervencionismo assistencialista, tenderia a agravar a pobreza relativa, isto é, o fosso entre ricos e pobres. Mesmo que esses neoconservadores tivessem razão, surge uma primeira indagação. Seria a economia brasileira uma economia globalizada ou neoliberal? A resposta é certamente negativa. Apesar da decantada abertura econômica, é ainda baixo nosso grau de globalização. Os dois melhores critérios de aferição são (a) a participação do comércio internacional (exportações mais importações) no PIB; (b) o influxo de investimentos estrangeiros diretos (que se integram à economia do país). Sob o primeiro critério, a economia brasileira é bastante fechada. Sendo nossa economia a 9ª do mundo em dimensão do PIB, nosso comércio exterior nos relega para a 24ª posição. Representando hoje menos que 1% do comércio mundial, nossa abertura, em termos relativos, se tornou uma fechadura pois já chegamos a alcançar no passado uma participação de 1,3%. Como recipiente de investimentos diretos, o Brasil progrediu muito após o Plano Real e as privatizações, mas partindo de níveis muito baixos. Somos hoje apenas o sexto recipiente de capitais diretos estrangeiros, abaixo dos EUA, China, Indonésia, México e Malásia. Em termos de participação no PIB, ficamos também abaixo do Chile e Argentina. Estamos certamente caminhando na direção da globalização, mas, se isso fosse uma ameaça, seria uma ameaça distante. O mesmo ocorre com o neoliberalismo. Todas as medições internacionais comparativas caracterizam o Brasil como um país em tímido e lento processo de liberalização, mas ainda fortemente dirigista e intervencionista. Isso, sob vários critérios: a) participação do dispêndio governamental no PIB; b) taxa de extração fiscal; c) regulamentação trabalhista e previdenciária; d) inconversibilidade da moeda e controles cambiais. O questionamento é, entretanto, mais fundamental. Independentemente de medir o grau efetivo de liberalização e globalização, estão erradas as premissas básicas dos neoconservadores (que se unem na oposição ao governo neoliberal): o globalismo e o neoliberalismo, longe de serem fatores de exclusão, são fatores de inclusão. Certamente, foi a globalização de mercados que permitiu o enorme surto dos asiáticos, incorporando todo um subcontinente ao ecúmeno industrial. Será que os "tigres asiáticos", na década dos 80, e a China continental, nesta década, teriam tido sucesso sem os dois instrumentos de globalização: o influxo de capitais (sobretudo japoneses) e a abertura de mercados (sobretudo o norte-americano)? Na realidade, nunca tantos países, em tão curto tempo, passaram de economias primitivas a economias industrialmente sofisticadas como no último decênio, marcado precisamente pelo colapso do socialismo e por acelerada globalização. O mesmo se pode dizer do neoliberalismo. Se essa palavra significa alguma coisa, é certamente a ampliação da área de aplicação da economia de mercado, na qual este, e não a autoridade central, governa as relações de produção. Mesmo nos países asiáticos, onde tradicionalmente o dirigismo governamental é maior que nas economias ocidentais clássicas, o fator dominante nas últimas décadas é a competição no mercado nacional e internacional. O determinante dinâmico do progresso foi a abertura competitiva, e não o dirigismo governamental. E quais os resultados? Nunca, em nenhuma época da história humana, tantas pessoas escaparam da pobreza como após o colapso mundial do socialismo. Por um dos paradoxos da história, o egoísmo capitalista foi mais eficaz que o altruísmo socialista na cura da pobreza. O caso mais dramático é o da China continental, onde coexistem, lado a lado, áreas socialistas de extrema pobreza e áreas semicapitalistas, onde a pobreza absoluta já foi erradicada. Medida pelo critério, admitidamente modesto, de US$ 1/dia por habitante, a pobreza absoluta praticamente desapareceu nos país "não socialistas" da Ásia. O fenômeno é também visível no Brasil. O abandono de fórmulas heterodoxas (intervencionistas) de controle da inflação, em favor do Plano Real (que não recorreu a congelamentos e confiscos), resultou numa substancial redução da pobreza absoluta. Com uma modesta guinada neoliberal, estabilizaram-se os preços da cesta básica, o que permitiu aos pobres acesso ao frango e a alguns bens duráveis de consumo. A julgar pelo otimismo presidencial, sorrisos desdentados começam a ser substituídos por dentaduras!... Terá assim a política "neoliberal" aumentado ou diminuído o número de "excluídos"? A grande verdade é que o maior fator de exclusão no país não é o neoliberalismo, e sim o peso da legislação fiscal, trabalhista e previdenciária, que empurra 57% da força de trabalho para a economia informal... Argumenta-se que o alto desemprego europeu indica as consequências negativas da globalização. Mas a que atribuir essa exclusão dos desempregados? Certamente, não a excessos do neoliberalismo, pois os EUA, líderes na liberalização e na globalização, têm hoje uma das mais baixas taxas de desemprego de sua história. E alguns países europeus, que fizeram reformas liberalizantes, como o Reino Unido e Holanda, têm desemprego inferior à média européia, sendo ao mesmo tempo intensamente globalizados. É também prematuro acusar a atual revolução tecnológica pelo desemprego. EUA e Japão têm mais intensidade tecnológica que a Europa, com menor grau de desemprego. No Brasil, falamos muito do "déficit gêmeo" -o fiscal e o cambial. À luz da experiência mundial, o globalismo e o neoliberalismo, que se expandiram após o colapso do socialismo, são muito mais includentes que excludentes. O que me leva a adicionar às minhas antigas leis de Kafka duas novas leis, que eu chamaria de "vingança dos liberais". A primeira, que representa uma vingança de Adam Smith contra Karl Marx, poderia ser assim formulada: "O grau de pobreza de um país é diretamente proporcional à intensidade de suas instituições socialistas". A segunda, que representa a vingança de Hayek, o liberal austríaco contra os antiliberais, pode assim ser formulada: "A boa distribuição de renda é inversamente proporcional ao número de burocratas e políticos empenhados em redistribuir as receitas do Estado". Texto Anterior: Espiral especulativa; Ajuste caro; Símbolo explicado; Biruta de aeroporto; Salto alto; Mau exemplo; Atirando para todo lado; Ficou só na espuma; Parque dos dinossauros; Grito tucano; Blitz geral; Vai esquentar; Pegou mal demais; Motivação especial; Salada ideológica Próximo Texto: O teste dos três honrados Índice |
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