São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Uma tensa celebração da brasilidade

SÔNIA SALZSTEIN
ESPECIAL PARA A FOLHA

Tal como em Tarsila do Amaral e Cândido Portinari, o que incomoda em Di Cavalcanti é o renitente aproveitamento de sua obra como ponto culminante na celebração do moderno, do nacional e do popular na arte brasileira. E notemos que, mais do que aqueles, Di ainda mereceu o medalhão consagratório de "pintor da brasilidade".
Como aproximar-se de uma obra ofuscada pelos brilhos desse fardão ideológico? De resto, como condicionar a aspiração moderna da arte brasileira da década de 20 -aspiração que, em sua mais profunda dimensão emancipatória, é essencialmente universalista, que se dirige antes de mais nada a uma ética de construção individual e que, em arte, propugna valores experimentais e investigativos- com a reivindicação nacional e popular, geralmente defensiva e conservadora?
Pode-se objetar que a preocupação nacional e popular manifestou-se mais de uma vez na história da arte moderna, estimulando obras extraordinariamente livres e originais. Como nas origens do expressionismo alemão, ou no cubo-futurismo russo, por exemplo. Mas manifestar-se-ia, em ambos os casos, associada ao mais profundo inconformismo formal, num embaralhamento tenso dos elementos internacionais e nacionais. E em situações nas quais estes últimos historicamente se apresentariam como os únicos capazes de objetivar aspirações culturais de ruptura frente a velhos modelos, solidamente estabelecidos.
A bem da verdade, nem precisaríamos ir muito longe para citar exemplos bem-sucedidos de fusão de internacionalismo modernista e desejo de afirmação nacional: a pintura de nossa Tarsila também expressaria uma reivindicação nacional e popular. Mas aí está: o sentido emancipatório do nacional e do popular na obra de Tarsila só se revelaria mediante a forma nova, advinda sob os auspícios da sociedade industrial, e não por acaso a artista iria buscá-la na vertente construtiva da arte moderna, tão apropriada a uma cultura que se via em processo de formação.
Ora, a pintura de Di Cavalcanti me parece interessante justamente como campo privilegiado de problemas, uma vez que a aspiração moderna da obra aparecerá o tempo todo refreada pela demanda de uma temática nacional e popular. Mas será mesmo refreada por esta ou pela cumplicidade de prestigiosos modelos acadêmicos, soprados, aliás, pelos ventos "modernizantes" do realismo socialista?
Movida mais por um sentimento de acomodação que de mudança, ela tentaria uma espécie de atualização "negociada" da arte brasileira, sempre com mais tentos marcados às duas determinantes locais (ou aos representantes ideológicos destas) que às rupturas pressupostas num efetivo projeto de modernização. E sem conseguir desvencilhar-se plenamente de um secreto gosto pela estética parnasiana que estava na origem de sua formação, com seus "impastos" e penumbrismo. Com isso, Di assegurava a assimilação frouxa, mas contínua, de um vocabulário moderno à arte brasileira, no curso de pelo menos três décadas de lenta atualização de nosso ambiente artístico, dos anos 20 aos 50.
Nesse sentido, a imagem de plenitude e sucesso que acompanha a carreira de Di demonstra-se bastante problemática, sobretudo quando comparada às dificuldades, ao caráter provisório da obra de Tarsila. Como é sabido, tal obra se desmancharia logo nos fins da década de 20, sem ter sedimentado suas promessas modernas, vítima das próprias contradições internas e, além do mais, no momento exato em que a de Di tomava impulso decisivo.
A plataforma modernista de Tarsila previa, basicamente, a intrusão cândida e insolente do elemento afetivo e intimista da paisagem brasileira na dinâmica impessoal da superfície cubista. Tratava-se, para a artista, de submeter a recém-conquistada espacialidade cubista ao teste de realidade da cultura local -armar o ponto de vista brasileiro, no final das contas.
O gesto da artista havia sido radical, escancarando em sua pintura um sem-número de contradições formais que, de resto, não eram apenas da obra, mas da própria sociedade brasileira, enredada num processo de modernização e dependência. Em todo caso, a forma contraditória que emergia de sua obra seria insuficiente para precipitar o correspondente campo cultural, no qual essas tensões ganhariam estatuto e expressividade social. Essas contradições acabariam assim por miná-la de dentro.
Diferentemente do que ocorrera com a obra de Tarsila, continuidade e adaptação seriam palavras-chave na pintura do artista carioca -ela avança por agregações sucessivas de estilos, pela combinação contínua de fragmentos emprestados, às vezes, a ordens formais discrepantes.
É fácil ver como ia requentando as experiências artísticas que havia assimilado no ambiente parisiense dos anos 20, como ia reconvertendo o radical internacionalismo modernista do qual fora testemunha naqueles primeiros anos às exigências conservadoras do projeto nacionalista local.
Aqui, um detalhe em arabescos, de portas abrindo para um balcão de ferro "meio Matisse"; ali, um empastelamento de coloridos planos decorativos, "meio Picasso"; nesta tela, um tampo de mesa violentamente projetado em primeiro plano, "cézanniano"; naquela, uma pitada "Braque", leve estrutura hachuriada, dispondo os objetos em chave construtiva; em muitas, o monumentalismo pomposo e solene do muralismo mexicano. E assim por diante.
Entretanto, isto de modo algum retiraria o interesse da obra de Di. Sem poder exigir dela grandes qualidades exploratórias ou renovadoras, pode-se dizer que suas limitações expressam a modalidade histórica contraditória em que se desenvolveu um projeto moderno para a arte brasileira: um tento marcado à experimentação e duas fabulosas recaídas conservadoras, quase sempre incitadas pelo populismo chapa-branca, tão presente na cultura brasileira.
A melhor pintura de Di Cavalcanti -aquela que se desdobra dos fins da década de 20 a meados da década de 40- é uma maravilhosa sedimentação de todos esses elementos, e não há como negar-lhe a plasticidade, a desenvoltura para ir criando uma sintaxe própria a partir de um punhado de achados "externos". Foi ele também quem acabou consolidando para a pintura brasileira uma iconografia popular, que na obra de Tarsila tinha sido apenas divisada.
Mesmo que tal iconografia não tenha logrado realizar-se numa forma plenamente moderna, e que tenha frequentemente caído presa de formidáveis conservadorismos, ela surge como este traço importante da arte brasileira, que é a busca da simplicidade formal, de uma dicção lírica e coloquial equiparável à que a música popular conquistaria, primeiro com o samba e, depois, num sentido diverso, com a bossa-nova (e que, para a produção artística, talvez só tenha se constituído de verdade a partir da década de 50, na simplicidade construtiva e na contundência expressiva do neoconcretismo, de artistas como Volpi ou mesmo Mira Schendel).
O propalado apreço de Di pelas mulatas, a boêmia, o samba, o bas-fonds carioca se traduziriam, mais do que na iconografia de sua pintura, num estilo de vida. Por isso, a atitude que emana dessa obra é talvez mais arrojada que a própria obra: potência erótica, formidável energia produtiva, descomedimento mundano, capacidade de indignação moral, deboche e desenvoltura para lidar com os acumpliciamentos do mercado.

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