São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Perto da humanidade

SILVIO CIOFFI
EDITOR DE TURISMO

Os amigos e a vida são assuntos que Oscar Niemeyer considera essenciais, mais importantes mesmo do que a arquitetura. E Di Cavalcanti, o pintor que teria feito cem anos ontem, dia 6, é um desses amigos cuja vida -e obra- mais admira.
Aos 89 de vida, o mais polêmico e conhecido arquiteto brasileiro acaba de completar 60 anos de carreira e de construir um romance: "Diante do Nada", que, editado pela Revan, terá ilustrações e será lançado até o fim do ano.
Mas, enquanto o livro não chega às livrarias, Niemeyer se mantém ocupado com o ofício da arquitetura e com os seus amigos, presenças constantes em seu escritório-ateliê numa cobertura antiga de Copacabana, onde recebeu a Folha para falar da vida e, sobretudo, lembrar-se de Di Cavalcanti.
*
O CENTENÁRIO
Di Cavalcanti foi sem dúvida um pintor importante, e agora, em 6 de setembro, no seu centenário, vale a pena lembrar dele.
Di era um pintor muito bom, e quando a obra de alguém me agrada, gosto sempre de saber da sua vida.
Estive com ele muitas vezes. Portinari também era importante, não há dúvida. Mas Di era mais humano, gostava da vida, de rir, gostava de mulher e... de pintar. Era mais de acordo com a gente. Talvez Portinari fosse mais fechado.
Dias atrás, uma jornalista me perguntou como eu definiria a inteligência, e como a pergunta foi inesperada, pouco disse naquela hora. Deveria ter respondido que um dos aspectos da inteligência é que não é possível comprá-la. Se fosse, os ricos ficariam inteligentíssimos e os pobres acrescentariam à sua secular miséria uma burrice injustificável. Ninguém pode se orgulhar de ser inteligente, um dom que a natureza espalha como uma loteria.
Os grandes feitos da humanidade, as inovações científicas e as obras de arte criadoras surgiram em função da intuição e do talento.
No caso de Di Cavalcanti, cujo centenário é marcado por mostras de pintura e homenagens de amigos e admiradores, temos um homem que usufruiu de tudo isso e assumiu sua verdadeira grandeza.

GRUDADO AO TELEFONE
Andamos, Di e eu, juntos pelo Brasil afora e rimos da vida e do mundo. Viajávamos pelas estradas entre o Rio e São Paulo, a comer pastéis e a jogar bilhar. Ele sabia que a vida muitas vezes é perversa demais, mas também sabia viver!
Uma vez dividimos um mesmo quarto de hotel em São Paulo. E eu ficava vendo Di se movimentar, gordo como uma tia que eu tinha, grudado ao telefone a falar com grã-finas e amigos.
Num belo dia, ele combinou comigo de sacanear o Ciccilo (Matarazzo, fundador da Bienal de São Paulo), dizendo: "Vou fingir que quero ser o diretor da Bienal".
Aí, preocupado em não magoar, e antes de notar que se tratava de uma brincadeira, Ciccilo explicou cheio de dedos que um pintor não poderia dirigir a Bienal...

OUTONO EM PARIS
Frequentei os ateliês de Di em Copacabana e no Catete. Ele telefonava e passávamos a jogar cartas e a rir das histórias com os amigos.
Já nos romances de Di, às vezes não imperava a mesma traquilidade, mas os amigos estavam sempre prontos a ajudá-lo.
Circulamos também juntos pela Europa e me lembro de um táxi que pegamos juntos em Paris.
Di, na ocasião, me disse, com um ar blasé, que "Paris era mesmo bom antigamente, quando éramos jovens". O motorista, um senhor simpático, discordava, dizendo que aquela estação, o outono, era a mais bonita do ano...
Quando um crítico não gostava de seu trabalho, Di retrucava sorrindo. E com razão: a inteligência ajuda a escrever um livro sobre arte, a citar fatos e gente com erudição. Mas, para escolher entre duas pinturas, precisamos mais do que isso, precisamos de bom gosto e de sensibilidade.

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