São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Um mundo em ruínas

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando, há 30 e tantos anos, Maria Sylvia Carvalho Franco escreveu "Homens Livres na Ordem Escravocrata", sabíamos muito pouco sobre os brancos pobres, personagens que, na expressão da autora, situavam-se na fímbria do sistema econômico, alicerçado no trabalho escravo até os fins do século 19.
Maria Sylvia Carvalho Franco segue uma linha clássica, que tem em Caio Prado Junior seu representante mais ilustre, ao encarar o homem livre e pobre, vinculado à economia cafeeira, como figura cujas oportunidades econômicas reduziram-se a serviços residuais, que na maior parte não podiam ser realizados por escravos e não interessavam aos homens com patrimônio.
Sem me alongar na controvérsia, penso que o razoável número de estudos hoje existentes sugere a necessidade de se reavaliar, no espaço e no tempo, a figura do homem livre e pobre, sem necessariamente vinculá-la a uma integração no interior da grande propriedade.
Sistema colonial
Ao analisar o latifúndio tal como se instalou no Brasil, Carvalho Franco recusa o ponto de vista corrente, na época em que escreveu o livro, de que ele teria um caráter "tradicional", baseando-se em uma forma regressiva de exploração do trabalho. Nessa esteira, refuta autores como Inácio Rangel, para quem o latifúndio colonial era "internamente feudal e externamente capitalista", recusando assim as teorias dualistas sobre a formação social brasileira.
A autora acentua que, no contexto brasileiro, as duas modalidades de produzir, no âmbito do latifúndio -produção mercantil especializada e produção de meios de subsistência-, estavam interligadas, como práticas constitutivas uma da outra. Em síntese, a economia colonial não é representada no livro como dualidade integrada, mas como unidade contraditória cujo conceito inclusivo é o de capitalismo, por imprecisa que seja ainda sua configuração no sistema colonial.
A obra de Carvalho Franco se baseia em uma longa pesquisa realizada no Vale do Paraíba, ou mais especificamente em Guaratinguetá, na época do ascenso, apogeu e crise terminal da velha civilização do café. Não se trata, porém, de uma monografia em sentido estrito, pois a autora formula generalizações importantes sobre vários temas, dentre os quais poderíamos lembrar a natureza das relações interpessoais das camadas pobres, a percepção que tais camadas tinham das instituições políticas e da grande política, a substância do elo que se constituía entre dominantes e dominados.
Essas generalizações, de inspiração marxista e sobretudo weberiana, tornaram "Homens Livres na Ordem Escravocrata" uma obra clássica que fez escola e despertou também algumas controvérsias.
Na impossibilidade de seguir todo o percurso do trabalho, optei por selecionar alguns temas que me parecem centrais.
Ao discutir as relações interpessoais dos homens livres e pobres, Carvalho Franco constata a onipresença da violência física, imbricada com as relações de solidariedade. A violência brota dos contatos de vizinhança, no trabalho, nos momentos de lazer, nos desacertos entre parentes, em especial os afins. A partir daí, em vez de definir comunidade e sociedade como duas realidades contrapostas, na linha de autores como Weber e Tõnnies, redefine a comunidade -no caso, a comunidade caipira do Vale do Paraíba- como uma forma social em que violência e solidariedade aparecem na condição de elementos intrinsecamente constitutivos. Trata-se de uma definição importante tanto pelo significado teórico quanto empírico; sob o último aspecto, a autora demonstra como o caipira não é nem personagem de um idílico mundo rural perdido para sempre, nem o inerte Jeca Tatu, popularizado por Monteiro Lobato.
É de se indagar, porém, em que medida a natureza da fonte utilizada por Carvalho Franco -processos criminais- não privilegiou as situações de ruptura e de violência física, levando-a a afirmar que lidou com um grupo social "decididamente orientado para a solução drástica dos conflitos". Ela enfrentou antecipadamente a objeção, dizendo que, ao examinar os documentos, de início pretendeu apenas localizar "os aspectos sociais porventura registrados", desprezando as situações de tensão. Ainda segundo suas palavras, ao passo que a pesquisa ia progredindo, a violência aparecia por toda parte, como um elemento integrante das relações que se visava conhecer, de tal sorte que a violência entranhada na realidade social fez a documentação, nela especializada, expressiva e válida.
A explicação me parece encerrar um círculo vicioso: por seus objetivos, seu formalismo jurídico, os processos criminais só muito obliquamente se preocupam com elementos das relações pessoais e sociais que não guardem íntima conexão com a quebra de um preceito penal e com as sanções daí resultantes. O grau de incidência da violência física, na região e no período considerados, só poderia ser definido com alguma segurança por meio de uma análise quantitativa dos processos, inclusive ao longo do tempo, discriminando-se a natureza das infrações, alternativa que passou ao largo dos objetivos e dos pressupostos do trabalho de Carvalho Franco.
Após examinar a natureza das relações interpessoais vigentes entre os homens pobres, a autora se dedica a analisar a dominação que se instaura entre o grande proprietário, de um lado, e, de outro, personagens considerados pobres, como tropeiros, vendeiros, sitiantes, agregados e camaradas. Detenho-me no caso dos sitiantes, que me parece mais amplamente explorado. Com muita argúcia, Carvalho Franco demonstra como entre fazendeiro e sitiante forjou-se uma relação de aparente igualdade, cimentada pelo compadrio. A aparência encobria a dominação, mas esta nem sempre era mão de uma única via, embora essencialmente os grandes proprietários fossem, como se sabe, o pólo dominante. Assim, diz a autora, se nos quadros da vida econômica nada restringia a arbitrariedade destes, no campo político podia-se observar "a dependência dos grandes proprietários com relação aos seus vizinhos menores", que detinham a moeda do voto.
Entretanto, ao comparar a condição do escravo com a do sitiante, chega a conclusões no mínimo discutíveis. No primeiro caso, as marcas violentas da opressão possibilitariam um desejo de liberdade, ainda que não concretizável. No segundo, anular-se-iam as possibilidades de autoconsciência, e o homem, aparentemente livre, estaria preso a um poder pessoal, que lhe conferia um destino imóvel e conformista. Essa "robotização" do homem livre e pobre me parece equivocada, tendendo a empobrecer a natureza da troca desigual de favores entre dominantes e dominados, característica do sistema clientelista.
No capítulo dedicado às relações entre o homem comum, a administração e o Estado, Carvalho Franco reforça, convincentemente, a tese da prevalência dos interesses privados sobre o interesse público, no âmbito administrativo local. Apesar dos esforços centralizadores do governo central a partir de 1840, pressupondo a construção de uma poderosa burocracia, o que se constata em Guaratinguetá -por intermédio da pesquisa das Atas da Câmara Municipal- é a lealdade do funcionário público em primeiro lugar a seu grupo, e não ao governo.
Desse modo, Carvalho Franco critica implicitamente a tese que tem em Raymundo Faoro seu representante mais significativo, segundo a qual, em termos simplificados, a história do Brasil se caracteriza pela dominação de um estamento burocrático sobreposto à sociedade. Segundo a autora, "no Brasil de então se confundem as esferas da vida pública e da vida privada", de tal sorte que, sob a imagem do "Estado-tutelar", surge a figura do "Estado-instrumento", a serviço dos grupos sociais mais poderosos.
Mentalidade rotineira
No capítulo em que trata da figura do fazendeiro, um ponto importante a ser ressaltado reside no refinamento da afirmação, convertida em lugar-comum, de que uma sociedade cujas atividades produtivas se baseavam em grande medida no trabalho escravo imprimiu no trabalho, sobretudo manual, a marca da desvalorização.
Carvalho Franco demonstra que, ao menos no caso da área geográfica em que se concentra seu estudo, a classe dominante tinha um comportamento ambivalente a respeito. Longe de se constituir em uma aristocracia, os fazendeiros paulistas do Vale do Paraíba eram personagens de origem em regra modesta, simples no vestir, frugais na alimentação, sóbrios mesmo quando excepcionalmente construíam mansões. Levados a buscar pelo esforço o acúmulo de riquezas, nunca puderam considerar o trabalho como elemento necessariamente desqualificador, apesar da inevitável associação entre trabalho manual e "trabalho de negro", em uma sociedade fundada no escravismo.
Por fim, a escravidão, as técnicas agrícolas predatórias, a "mentalidade rotineira" foram fatores que transformaram os fazendeiros do Vale em protagonistas de uma crise irremediável. Nas palavras de Carvalho Franco, eles avaliaram com justeza seu mundo do ponto de vista prático, mas não alcançaram que essa eficácia tinha seus limites, estabelecidos por todo um universo de relações que necessariamente ultrapassava seu entendimento.
Esses senhores todo-poderosos, mas nem tanto, viram seu mundo ruir, e muitos deles se converteram em homens livres e pobres, em desclassificados pelo descenso social.

Notas:
1. Ver, por exemplo, Laura de Mello e Souza, "Os Desclassificados do Ouro - A Pobreza Mineira no Século 18" (Graal, 1982) e Hebe Maria Mattos de Castro, "Ao Sul da História" (Brasiliense, 1987);
2. Cardoso trata de demonstrar a existência de um protocampesinato negro na América Latina, em "Escravo ou Camponês - O Protocampesinato Negro nas Américas" (Brasiliense, 1987), em que discute a refutação de sua tese por parte de Jacob Gorender.

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