São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Entre Israel e os pampas

LUIS S. KRAUSZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Mozart Não Era Judeu", romance de estréia da escritora israelense nascida na Argentina Gabriela Avigur-Rotem, está para a imigração judaica na América Latina assim como os livros de Scholem Aleichem ou Isaac Bashevis Singer estão para a trajetória dos imigrantes judeus da Europa oriental nos Estados Unidos.
Confluência de vertentes como a literatura ídiche, o realismo fantástico latino-americano e a tradição bíblica e talmúdica, este trabalho foi merecidamente saudado pela crítica em Israel, e chega ao leitor de língua portuguesa numa tradução direta do hebraico assinada por Nancy Rozenchan, hábil tradutora que vem, nos últimos anos, trazendo com consistência ao leitor brasileiro alguns dos mais interessantes títulos da moderna prosódia israelita.
Em forma de uma saga que envolve mais de 60 personagens e abarca cerca de cinco décadas da história do século 20, o livro estrutura-se em torno das trajetórias de duas famílias de imigrantes, que acabam por entrelaçar-se através de um casamento: os Hidekel, em Buenos Aires, e os Gurman, nos pampas.
Cidade e campo são apenas uma das muitas contraposições possíveis entre estas duas linhagens, que encarnam duas versões de um só sonho: o de fazer a América. Para o patriarca Leon Hidekel isso significa desenvolver, em seus filhos, os dons artísticos que, em sua opinião, trazem inatos, e, para tanto, compra, para cada um deles, um piano, tão logo nasçam.
Sua mulher Ida, encarnação do poderoso arquétipo da mãe judia, vê com ceticismo os vôos da imaginação do marido. "Até Mozart começou a tocar aos três anos", diz ela, quando chega à casa da família um piano destinado a um recém-nascido. "Mozart não era judeu", retruca o obstinado Leon, que se considera um descendente dos khazares, povo caucasiano que se converteu ao judaísmo.
Já o sonho de Isac Gurman é vinculado ao solo. No início do século, décadas antes da fundação do Estado de Israel, e enquanto o sionismo apenas começava a engatinhar, a Terra do Fogo, com suas intempéries, pragas e nuvens de gafanhotos, é o cenário onde os Gurman saciam a sede milenar de um povo desterrado em busca de chão.
Sua história, assim, foge aos clichês urbanos da imigração judaica americana e surpreende enquanto confluência do primitivismo agreste dos gaúchos, com suas infindáveis superstições e crendices, e do intelectualismo, dos rigorosos preceitos e das tradições do judaísmo.
O primogênito dos Gurman, Aron, que manobra o facão e as rédeas com destreza, cavalga pelos campos e se mete em encrencas, é um surpreendente prenúncio da figura do Sabra, o homem da terra de Israel, e um contraponto à figura frágil do judeu sem terra, desvinculado do solo e em permanente exílio.
No livro estão os ecos de todos os grandes acontecimentos do século 20: desde o sonho comunista até a morte de Evita; desde a emancipação feminina até o sionismo, passando pelas milenares citações bíblicas, que permeiam a narrativa tanto na forma de falas dos personagens quanto em analogias com suas trajetórias.
A atmosfera frequentemente reminiscente de Garcia Márquez, que aparece repetidas vezes, é talvez deliberada, mas ainda assim traz bons resultados. Por causa de semelhanças históricas, o leitor encontrará também paralelos com a história judaica no Brasil.

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