São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Gozo místico

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
ESPECIAL PARA A FOLHA

A sobriedade elegante da apresentação gráfica de "Bundo", seleção em dois tempos da poesia de Valdo Motta, organizada por Berta Waldman e Iumna Maria Simon, contrasta com a orelha do livro, em que o autor, também ator, é introduzido e louvado pelos versos tropicalizantes de José Celso Martinez Corrêa.
O embate entre a fala profética, o discurso sublime inspirado pelo Deus terrível do Velho Testamento e o escracho realista, pagão e dionisíaco vestido pela brevidade e a ironia modernas, é apenas um dos prolongamentos desta tensão original de uma poesia igualmente atraída pelos pólos da religião e da sexualidade.
Nascido em Boa Esperança do Espírito Santo, em 1959, negro e homossexual, é o próprio Valdo Motta quem dá conta, no prefácio, de uma história de engajamento político em defesa das minorias, que foi desembocar na descoberta da força simbólica da linguagem bíblica e da tradição poética que combina o erótico e o espiritual, a sensualidade e o misticismo no gozo místico.
Lidos em chave homoerótica, os versículos bíblicos emprestam tom solene e ritualizado à celebração do corpo, subvertendo a fúria punitiva divina em conclamação ao prazer: "Que o sol fique lívido/ e a lua corada de vergonha,/ e as estrelas desmaiem, errem sua rota os planetas/ e os céus aturdidos se embaralhem./ Urrem os mares e os montes estremeçam,/ porque a Terra santa grita e sacoleja/ de gozo: chegou o seu Esposo".
Não apenas San Juan de la Cruz ou Santa Tereza D'Ávila, mas também o "Cântico dos Cânticos" revive no convite ecumênico: "Vem comigo, meu amado,/ fervamos o leite cósmico./ Celebremos nosso gozo/ no cristântrico festim.// Vem, querido, preparar/ o teu mosto em meu lagar/ e fazer o vinho santo.// Vem destilar a mirra/ do monte dorsal e o mel/ que mana da rocha viva".
Sua contestação à religião oficial ("uso a paródia contra os enganadores") serve-se do escatológico e da violência crua das imagens, ora oswaldiana e bem-humorada ("Venerai o Santo Fiofó,/ ó neófito das delícias,/ e os deuses hão de vos abrir as portas e a fortuna vos sorrirá", em "Exortação"); ora agressiva, voluntariamente desagradável, raiando o mau gosto ("Eu sou a Nossa Senhora do Buraco Negro,/ Sujo e fedorento da Rocha Dorsal,/ mãe dos nove céus a tetéia do caralhudo./ ... Ai de quem esqueceu a pedra santa/ e o caminho da casa do Senhor!", em "Anunciação").
Servindo-se do tema do percurso iniciático, à poesia e ao corpo, entre os dedos e os dátilos, combina a tradição judaico-cristã, referências ao paganismo e epicurismo clássicos com o tema do auto-erotismo: "Extáticos dátilos/ ébrios caribos,/ transidos curetes... em ofício sacro/ no ano celeste" ou "não me canso de tocar/ a lira de dez dedos/ neste frenético louvor/ ao Deus vivo/ meu rochedo".
A concisão das pílulas e brevíssimas cenas líricas reforçam o parentesco com Oswald de Andrade. Veja-se o micro-soneto: "Quem/ não/ tem/ bens// Bem/ não/ tem/ não// tem/ não/ tem// não/ tem/ não", em "Os Sinos"; o humor trocadilhesco, ácido de "E Agora, Ô Meu" -"Eis no que deu/ a Terra Prometida/ por Prometeu"; ou a esconjuração da Aids, assimilada ao mítico Reino dos Mortos: "Hás de ir ao Id, hás de ir ao Id,/ Para depor Hades e tudo que preside,/ e, depondo Hades, todos os podres/ que impedem a mútua doação dos seres". Mas é no recurso à dicção profética que o poeta promete e ambiciona mais. Motta usa e abusa da abertura ambígua da linguagem mítica, bíblica ou não, e oferece ao leitor sua própria chave de leitura.
O caso é que, na divisão entre a experiência coletiva, lastro histórico e cultural dos símbolos do sagrado e uma fala simbólica que parte da constatação humilde de que legisla em terreno pessoal ("a poesia é a minha/ sacrossanta escritura/ cruzada evangélica/... Só ela me salvará/ da guela do abismo./ Já não digo como ponte/ que me religue/ a algum distante céu,/ mas como pinguela mesmo,/ elo entre alheios eus", em "Religião"), está ao mesmo tempo a força e a fraqueza de suas imagens.
Muitas vezes, o risco de que não escapa é o do recurso instrumental aos mitos e emblemas, neutralizando o impacto e sobrecarregando, artificialmente, de escoras exteriores os poemas, que ganhariam caso não precisassem desta erudição funcional e da legitimidade conferida pela tradição.
Como volume, "Bundo" traz a mesma desigualdade, manifesta em poemas que, no empenho de encenar o escândalo da própria novidade e de seu apego ao prazer vital, deixam de fazê-lo para ser tão-somente espetáculo novidadeiro. Que sua voz não se perca neste fosso.

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