São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Revista debate a reforma do Estado

LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA

Só é possível definir com clareza o direito à "res publica" se tivermos uma noção clara do interesse público. Isto não é essencial quando estamos diante de ofensas óbvias à coisa pública como a corrupção e o nepotismo. Poderíamos chamar de direitos "clássicos" à "res publica" os direitos do cidadão contra a corrupção nas compras públicas, contra a sonegação de impostos e contra o nepotismo. O direito contra a corrupção nas compras públicas está previsto no direito penal. Procura-se evitar o nepotismo por meio de instituições do direito administrativo, principalmente o concurso público para admissão de servidores.
Existem, entretanto, outras violências tão ou mais graves contra o direito à "res publica", que não são tão óbvias ou clássicas. Todas são relacionadas a políticas de Estado que pretendem ser políticas públicas, mas que na verdade atendem a interesses particulares e indefensáveis.
Neste caso temos, em primeiro lugar, as políticas econômicas ou "políticas industriais", que, sem uma justificativa econômica baseada no interesse geral, protegem indevida e excessivamente determinadas empresas ou indivíduos, beneficiando-os com subsídios, renúncias fiscais e proteção contra a concorrência. Embora seja difícil distinguir as transferências legítimas das ilegítimas, no Brasil tivemos abusos evidentes, casos-limite, como os empréstimos sem correção monetária ou com correção monetária limitada em época de alta inflação, os subsídios recorrentes a usineiros de açúcar no Nordeste quando esta atividade é claramente antieconômica na região etc.
Em segundo lugar, temos as políticas pretensamente sociais, mas que protegem indevidamente indivíduos e grupos, principalmente membros da classe média, que detêm maior poder eleitoral. Novamente casos-limite desse tipo de violência foram as vantagens concedidas aos mutuários do Sistema Financeiro de Habitação no final dos anos 80 e as vantagens que gozam os pensionistas dos fundos fechados das empresas estatais; nos dois casos os prejuízos do Tesouro do Estado foram enormes.
Em terceiro lugar, temos as políticas administrativas que protegem indevida e desequilibradamente ou todos os funcionários públicos, ou determinados grupos de servidores públicos, inviabilizando que se cobre deles trabalho e remunerando-os de forma desproporcional à sua contribuição ao Estado. A estabilidade rígida garantida aos servidores pela Constituição de 1988 e os profundos desequilíbrios existentes nas suas remunerações são exemplos desse tipo de violência contra o direito à "res publica". Políticas previdenciárias para servidores públicos, que lhes garantem privilégios de uma aposentadoria integral e precoce, totalmente desvinculada das contribuições previdenciárias que realizaram, são outra forma de violência aos direitos republicanos.
Este tipo de violência contra a "res publica" apresenta, entretanto, uma grande dificuldade. Afinal o que é o interesse público? Como dizer se determinada política do Estado consulta o interesse público, defende a "res publica", ou, ao contrário, privilegia grupos especiais de interesse? Evidentemente não é possível identificar o Estado e as políticas do Estado com a racionalidade absoluta, com o interesse público em abstrato, como sugeriu Hegel, da mesma forma que não é possível cair no erro oposto de transformar o Estado em agente exclusivo das classes dominantes, como fizeram Marx e principalmente Engels. Neste ponto, análises lógico-dedutivas do tipo adotado por Hegel são de pouca utilidade. A visão histórica de Marx e Engels, por sua vez, tem valor ilimitado à medida que o avanço, nestes últimos 150 anos, da democracia e dos direitos de cidadania vão aos poucos se encarregando de refutá-la.
Na verdade, nas democracias sociais-liberais contemporâneas, marcadas pela representação política dos mais variados grupos de interesses, por coalizões de classe de todos os tipos, ninguém tem o monopólio da definição do interesse público. Cada grupo, cada classe pretende representar corporativamente o interesse público, de forma que nos deparamos com uma heterogeneidade de "interesses públicos" conflitantes. Isto, entretanto, não significa que o interesse público não exista, que a defesa da "res publica" em nome do interesse público não possa ser realizada. Não significa também que o interesse público só possa ser defendido indiretamente por meio da defesa do auto-interesse, dos interesses egoístas, coordenados pelo mercado, como pretende o liberalismo radical, neoliberal. Significa apenas que o interesse público não existe de forma absoluta e portanto autoritária. Existe, sim, de forma relativa, por intermédio do consenso que aos poucos as sociedades civilizadas vão formando sobre o que o constituiu, e, mais amplamente, sobre o que constitui uma moral comum.
Este consenso parte de uma distinção entre o auto-interesse e os valores civis, como fatores determinantes da motivação humana. Se aceitarmos, como se tornou corrente entre os economistas e cientistas políticos neoliberais da escolha racional e das expectativas racionais neste final de século, que os indivíduos só se motivam pelo auto-interesse, a idéia de um consenso em torno do interesse público torna-se contraditória, como se torna contraditória a idéia de cidadania. Conforme observa Boaventura de Souza Santos (em "Pela Mão de Alice"), "o regresso ao princípio do mercado nos últimos 20 anos representa a revalidação social e política do ideário liberal em detrimento da cidadania". Entretanto, se incluirmos na motivação humana, ao lado dos interesses egoístas de cada indivíduo ou grupo, os valores cívicos -os valores que permitem a "paidea" dos gregos-, podemos pensar na formação de um consenso sobre o interesse público ou sobre os valores cívicos por meio principalmente da educação como uma característica fundamental das sociedades civilizadas.

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