São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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A reconsideração dos direitos sociais

DENIS ROSENFIELD

Um dos pontos centrais do artigo de Bresser Pereira é o conceito de democracia e o problema de como se pode, normativamente, estabelecer uma partilha da "res publica", identificada em sua significação restrita de "patrimônio econômico", ou seja, do "estoque de ativos públicos e principalmente do fluxo de recursos públicos que o Estado e as organizações públicas não-estatais realizam periodicamente". Uma tal definição da "coisa pública" tem, de um lado, a virtude de recolocar o problema do destino desses recursos e de sua apropriação privada, seja por capitalistas, seja por setores privilegiados do Estado, seja por corporações estatais e privadas, e, de outro lado, exige que se pense diferentemente o conceito de democracia. Sob essa ótica, ele propõe uma conceitualização, a de "direito republicano", que possa conduzir a uma outra visão do Estado brasileiro e à formulação de ações políticas e jurídicas consoantes com essa visão.
O conceito de democracia, e sua particular "aplicação brasileira", remete a um problema mais amplo, qual seja, o do seu embasamento "corporativo", pois o problema do "corporativismo" nas sociedades democráticas é intrínseco ao seu modo de funcionamento. No caso brasileiro, o problema do corporativismo é ainda mais acentuado por tratar-se de um Estado de claro corte oligárquico, de tal maneira que o modo político de funcionamento das corporações tende a acentuar a exclusão dos que não participam da "coisa pública" em sua acepção de fluxo de receitas tributárias e outros mecanismos constitutivos do financiamento do Estado. Ou seja, considerando um "x" determinado de "patrimônio econômico-público", a ação das corporações ganha um contorno patrimonialista ainda maior, pois os que não fazem parte da cena pública, os que apenas exercem os seus "direitos políticos", não têm acesso aos mais elementares "direitos sociais".
Neste caso, o conceito proposto de "direito republicano" deve passar necessariamente por uma reconsideração dos direitos sociais à luz de um Estado verdadeiramente republicano, o que implica uma necessária reformulação de determinadas práticas "público-democráticas", ou melhor, corporativas no seu mais amplo sentido. O que Bresser Pereira indica como a necessária elaboração de um novo conceito de "direito republicano", assinala, na verdade, a crise de uma certa forma de democracia e aponta para um novo conceito de regime político, consoante com um tratamento público da "res publica".
A identificação entre "patrimonialistas" e "corporativistas" enquanto "livres atiradores" coloca por sua vez a questão relativa ao próprio exercício da democracia em sua relação com a "coisa comum", com a "república" na acepção de comunidade política organizada segundo a defesa de seu "patrimônio econômico". Com efeito, há formas de ação, particularmente danosas para a "res publica", que são não apenas legais, mas correspondem ao modo mesmo de funcionamento de um tipo de sociedade democrática. Tenderia, neste sentido, a dizer que não se trata de um disfuncionamento da democracia, mas talvez de sua "crise", pois a atuação política e jurídica do corporativismo, de apropriação privada do público, é reveladora de uma determinada forma de exercício contemporâneo da política.
Desse modo, as formas "modernas" de exercício da violência no sentido da apropriação privada da "coisa pública", e que não são fruto da corrupção ou da improbidade dos funcionários, pois esses delitos são perfeitamente enquadráveis no direito penal, colocam um problema legal e político de outro tipo. Com efeito, essas outras formas de ação jurídica e política são "modernamente democráticas", são "legais" (no conceito em questão de democracia) e nascem da própria afirmação, no nível do poder, do jogo dos interesses corporativos. Caberia mesmo analisar até que ponto a democracia não estaria voltando para um tipo de exercício patrimonialista do poder político. Determinados direitos sociais assim autoproclamados servem, muitas vezes, como roupagem de interesses particulares pelo uso corporativo da democracia que atentam contra a "res publica". Isto transparece inclusive, no meu entender, na dificuldade encontrada em definir "as ações judiciais injustas ou infundadas contra o Estado".
A dificuldade consiste, na verdade, em dar conta do próprio conceito de democracia utilizado, pois se, de um lado, o problema é jurídico, ele não se esgota nessa esfera, visto que, de outro lado, ele remete à própria estrutura oligárquica do Estado brasileiro, segundo a qual os que usufruem do "patrimônio público-econômico" são também aqueles que pensam decisivamente na definição das políticas públicas, aí compreendendo os grandes grupos capitalistas, determinados grupos da elite no Estado e os políticos diretamente envolvidos em negociações que procuram preservar a estrutura política existente assim como suas posições de mando. Neste sentido, a definição de um "direito republicano" deveria ser necessariamente abrangente, aí incluindo os "patrimonialistas" de diferentes matizes partidários, sociais e econômicos.

Denis L. Rosenfield é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, autor de "Política e Liberdade em Hegel" (Ática), entre outros.

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