São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Ilusões de uma história

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA, DO CÁRCERE DE REBIBBIA (ROMA)

No mês passado morreu François Furet, o grande historiador revisionista francês. Tive ocasião, nos anos 70, de frequentar suas aulas sobre o jacobinismo, que me influenciaram profundamente. Recentemente, quando o livro foi lançado, li a sua história da idéia comunista no século 20: história de uma ilusão. Este livro monumental não me impressionou do mesmo modo que acontecera por ocasião dos estudos sobre a revolução francesa. Pergunto-me o porquê.
Uma primeira explicação encontro-a imediatamente: é que a crítica do jacobinismo, dirigida contra a historiografia marxista que, sobre a grande revolução francesa (derrotada) tinha moldado a épica da grande revolução russa (vencedora), ainda assim se mantinha no princípio inspirador da história social.
Ainda que o jacobinismo fosse considerado o produto de motivações ideológicas (e não como representação dos interesses das camadas mais exploradas do proletariado ou até como primeiro e consciente aparecimento político destas), mesmo neste caso a determinação material e social do evento histórico era, no entanto, mostrada.
A ideologia não coincidia, no desenho crítico do jacobinismo de Furet, com a estrutura de classe, mas agia dentro desta, configurava o movimento de massa e, justamente por não coincidir, podia deturpá-lo, arrastá-lo para o extremismo e impor ao movimento revolucionário sinais contraditórios e êxitos suicidas.
Mas é através desta maranha que a revolução se torna uma enorme usina de transformação; e é devido à atenção aos elementos de heteronomia, às casualidades indeterminadas, à inextricável singularidade do entrelaçamento entre ideologias, determinações materiais e transtorno das instituições que aquela história furetiana da revolução constituía uma atuação poderosa, uma profunda inovação historiográfica. Por assim dizer, Furet retomava na historiografia aquele sentido da superfície indeterminada do mundo que, no mesmo período, Prigogine e Stengers generalizavam a partir da crise da física moderna.
Por que motivo, então, o grande livro revisionista de Furet sobre a história da idéia comunista no século 20 não me convenceu? Porque, ao contrário de quanto fizera para a revolução francesa, aqui Furet (permitam-me acentuar a polêmica) dá à sua historiografia o cunho de uma história sacra às avessas, monolítica e perversa. É a história de um erro, construído lógica e emocionalmente, que se desenvolve virginalmente -pecado original, pecaminosa e agostiniana cidade do homem, predestinada à perdição. Mais que história de uma ideologia, trata-se de uma patologia epidêmica.
A conclusão revisionista consiste no fato de que o triunfo da ideologia comunista na classe operária e na "intelligentsia" ocidental é identificada numa ambígua e delirante resistência ao fascismo, do qual o comunismo é o espelho deformado. Polêmica à parte, o que falta ao livro de Furet sobre o comunismo é justamente o gosto por uma metodologia da superfície e da contradição: aqui a superfície é plana antes que acidentada, e as contradições são enganos e erros.
Alguém insinuou maldosamente que nesta obra de Furet não haveria muito mais do que havia nos vários "Escolhi a Liberdade", de Koestner ou de Kravtchenko, obras de propaganda nos anos mais sombrios da Guerra Fria. Mas não é verdade. A riqueza da documentação, a extensão da análise, a elegância da argumentação não podem ser subestimadas.
Claro, trata-se de materiais publicados e não do resgate das novas (e imensas) fontes de documentação que a queda do Muro colocou à disposição dos estudiosos: isso não significa que a a obra não seja, a seu modo, exemplar. Mas, justamente, repito-me, metodologicamente incorreta, a partir das premissas que sustentavam a obra anterior de Furet e todo o desenvolvimento da historiografia contemporânea.
Mas com que finalidade tratar desta obra se a considero tão incorreta? Por dois motivos.
A de Furet é um exemplo de historiografia "reacionária". Amiúde, a reacionária foi grande historiografia. Os livros de Burke contra a Revolução Francesa foram, como Friedrich von Gentz -o seu tradutor alemão- adorava dizer: "Uma obra revolucionária contra a revolução". Estes propunham, através da polêmica, um novo modelo de Estado e insistiam sobre a continuidade histórica e sobre o realismo político.
O modelo contra-revolucionário que auspiciavam tornava-se projeto político para a atualidade: neste, a Santa Aliança dessedentou-se, e a política do imperialismo do século 19 encontrou sólidos alicerces. Nada disso em Furet: sua historiografia é impotente. Não propõe nada. É uma historiografia do "fim da história" -um verdadeiro bate-boca terminológico.
É cega e muda diante do pós-moderno, da mundialização, do fim do Estado-Nação e do colonialismo, isto é, diante dos máximos problemas da atualidade. Age feito uma "vassoura de Átila" sobre o passado, sem nos permitir um presságio do porvir. Esta historiografia apaga as razões da revolta sem fazer com que compreendamos se suas razões persistem. É uma obra impotente.
O segundo motivo que me leva a falar desta obra é puramente subjetivo. Para obter a libertação do cárcere onde estou trancado por motivos políticos, estou a debater, entre outros temas, a memória histórica. Ora, minha memória comunista não pode, de modo algum, nem digo ser criticada, mas sequer abarcada pela definição de comunismo proposta por Furet. Paradoxalmente, os juízes italianos que me mantêm no xadrez (mas que, dia mais, dia menos, irão me libertar) entendem disso mais do que ele.
Porque sabem, ainda que numa frente oposta, o que eu sei: isto é, que a vicissitude da idéia comunista é tão misturada com a longa duração da história -isto é, com as lutas, os desejos, as utopias e os crimes de um século inteiro de nossas sociedades, com os ciclos da história e com a memória ontológica das gerações- que falar disso apenas como uma idéia é um "nonsense". O sonho do comunismo representou uma mutação antropológica: poderemos domá-la, mas de modo nenhum anulá-la.

Tradução de Roberta Barni.

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