São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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A lei da bandeira negra

KENNETH MAXWELL
ESPECIAL PARA O "THE NY REVIEW OF BOOKS"

Os primeiros livros sobre piratas surgiram surpreendentemente pouco depois da pirataria que descreviam. O mais bem-sucedido entre os primeiros piratas foi Henry Morgan, que saqueou a cidade colonial espanhola Panamá, em 1671, e foi pintado como um monstro de depravação e crueldade no best seller "Buccaneers of America" (Bucaneiros da América), de Alexander Exquemelin, inicialmente publicado em holandês, em 1678, e posteriormente em inglês, em 1684.
Morgan abriu processo por difamação de caráter. Objetou energicamente contra um trecho que dizia ter ele ido inicialmente às Índias Ocidentais na condição de colono e argumentou que, como o governador da Jamaica, sir Thomas Modyford, autorizara seus ataques contra as possessões espanholas, não podia ser considerado pirata. O caso foi dirimido fora dos tribunais e Morgan recebeu polpudas indenizações.
Chamado de volta a Londres a fim de aplacar os espanhóis, pouco depois Morgan foi agraciado por Carlos 2º com o título de cavaleiro, retornando mais tarde para a Jamaica na condição de vice-governador, onde adquiriu propriedades rurais e mais de cem escravos. Morreu rico. Foram as grandes bebedeiras que acabaram com ele: "De volta a seu antigo estilo de vida e sem aceitar nenhum conselho em contrário, sua barriga inchou a ponto de sequer caber dentro do casaco", informa-nos Hans Sloane, que o assistira. Para resolver essa questão, Morgan recorreu a um xamã africano que lhe emplastrou o corpo com lama e fez com que bebesse urina, "mas ele definhou e, com a tosse aumentando, morreu pouco depois".
O governador da Jamaica ordenou um funeral com honras de Estado para Sir Harry, e uma cerimônia solene foi realizada na igreja Saint Peter, da qual Morgan era um benfeitor. Quando os navios de guerra no porto dispararam 21 tiros para saudar o ex-vilão, os canhões das embarcações mercantes responderam com sua própria artilharia, desordenada, mas ruidosamente. Mas, nisso tudo, Henry Morgan foi uma exceção. A maioria de seus colegas teve carreira breve, fim precoce e desagradável, morrendo sem um centavo e com o espólio perdido em tavernas e bordéis de Port Royal -a capital da Jamaica e um dos grandes paraísos bucaneiros do Caribe até sua destruição por um terremoto, em 1692, punição adequada para seus crimes e contravenções passados, argumentaram alguns àquela época.
Um dado, contudo, parece certo: os livros sobre piratas tendem a faturar mais do que seus protagonistas conseguiram. A exposição "Piratas - Fato e Ficção", apresentada no Museu Marítimo de Londres em 1992, e planejada para um período de quatro meses, permaneceu em cartaz durante três anos devido a pedidos do público. Sendo assim, não é de estranhar que um agente literário de Nova York incentivasse David Cordingly, um dos curadores, a trabalhar o tema da exposição em forma de livro (leia ficha nesta página), contrastando a imagem ficcional dos piratas com a realidade histórica.
Cordingly concentra-se principalmente na grande era dos piratas, entre a última metade do século 17 e o começo do 18, em particular entre 1650 e 1725. Para estudar o "mundo real" dos piratas, recorreu a fontes contemporâneas em inglês, especialmente os diários de bordo dos navios das marinhas em inglês, especialmente os diários de bordo dos navios da marinha real enviados na perseguição aos piratas, os relatórios de governadores das colônias e os depoimentos escritos de piratas capturados e de suas vítimas.
O autor tem também muito a dizer sobre a imagem popular dos piratas, apoiado em três séculos de baladas, melodramas, poemas épicos, filmes, romances românticos, bem como nos dois clássicos da tradição popular, "A Ilha do Tesouro" (1883), de Robert Louis Stevenson, e "Peter Pan" (1904), de J.M. Barrie. Recorre extensivamente -como ele mesmo admite- às obras de Robert Ritchie, Marcus Rediker, Peter Earle e Nicholas Rodger, historiadores que, por caminhos diferentes, contribuíram para revolucionar o estudo da vida cotidiana no mar naquele período (1).
Cordingly reconhece quase de imediato que a idéia popular sobre como os piratas se vestiam revela-se surpreendentemente precisa. Tal como outros marinheiros do período, usavam jaqueta azul curta, camisa xadrez, calça comprida de lona ou um tipo de culote largo e, frequentemente, um colete vermelho e lenço de pescoço.
Os piratas de fato amarravam echarpes ou grandes lenços em volta da cabeça (uma medida sensata e prática contra os raios de sol no mar ou nos trópicos); carregavam várias pistolas em bandoleiras presas em volta dos ombros (outra medida sensata, pois, uma vez que as espingardas de pederneira não podiam ser confiáveis no mar, caso alguma falhasse devido à umidade na munição, uma segunda ou terceira sobressalentes viriam a calhar); empunhavam cutelos, e os chefes eleitos eram figuras vistosas e carismáticas.
O capitão pirata Bartholomew Roberts, conhecido como "Black Bart", supostamente responsável pela captura de 400 embarcações, lutou pela última vez em batalha marítima em 1722, usando "colete e um calção tipo culote em tecido adamascado carmim, uma pena vermelha no chapéu e, no pescoço, uma corrente de ouro com uma cruz de diamante".
Porém, vestimenta é uma coisa, comportamento é outra. Os piratas que encontramos no livro de Cordingly são um bando de sanguinários, distantes dos próceres empobrecidos descritos por W.S. Gilbert e Sir Arthur Sullivan em seu "Pirates of Penzance". O "Boston Gazette" apresentou em março de 1726 uma descrição realista de Philip Lyne, o famoso pirata que, ao ser julgado em Barbados, confessou ter matado 37 mestres de navio e um sem-número de marinheiros. O comandante foi a julgamento "com mais outros 20 piratas, tendo sua bandeira de seda preta diante deles... Como estivessem muito feridos, e sem qualquer cuidado no vestir-se, aparentavam ser ofensivos, e cheiravam mal ao passarem, particularmente Lyne, o comandante: tinha um olho caído, o qual, com parte do nariz, ficava pendurado no rosto".
Piratas e corsários
"Pirata" era uma designação muito específica e a distinção entre pirata e corsário era muito importante, ao menos perante a lei, se é que não o fosse na prática. Um corsário era um navio armado, ou o comandante e tripulantes de uma embarcação que tivesse licença para atacar e apreender os navios de uma nação inimiga. A licença era expressa em uma "carta de corso". No século 16, o sistema de licenças fornecia a todas as nações européias de navegação marítima um meio barato de atacar esquadras inimigas em períodos de guerra.
A carta de corso era um documento legal relevante e imponente, e o capitão corsário deveria manter um diário de bordo e entregar o navio e mercadorias confiscadas a um tribunal da marinha, onde o soberano pegaria sua parte (ou soberana, no caso da rainha Elizabeth, que sempre demonstrara interesse voraz em tais partilhas de espólio). O restante do saque era dividido entre os donos do navio, capitão e tripulação. Um "pirata", por outro lado, era legalmente definido na Inglaterra desde a época de Henrique 8º como alguém que rouba e saqueia no mar; e as leis contra pirataria estipulavam punições por "crimes graves, roubos e assassinatos cometidos em qualquer ancoradouro, rio, enseada, ou em qualquer local na jurisdição do lorde comandante-chefe".
Os piratas recebiam diferentes nomes regionais. "Bucaneiro" era usado no Caribe e na costa atlântica das Américas. O termo designou inicialmente os caçadores das florestas e vales da Hispaniola Ocidental (hoje Haiti) que tiravam seu sustento dos porcos selvagens e gado, cujos rebanhos aumentaram rapidamente de número depois que os primeiros colonizadores espanhóis os introduziram em terra sem predadores naturais. Em sua maioria habitantes da fronteira francesa, esses caçadores cozinhavam e secavam tiras de carne sobre grelhas abertas, um método emprestado dos habitantes nativos Arawak.
A palavra para esse processo, "boucaner" (defumar ou curar), passou a designar esses homens. Vestiam-se de couro e, com suas facas e aparência sangrenta, "tinham o aspecto e odor de quem trabalha em abatedouro", segundo Cordingly. Na década de 1630, os bucaneiros estabeleceram-se em Tortuga, perto da costa norte do que é hoje o Haiti, uma base ideal para lançar ataques às embarcações mercantes valendo-se do corredor de barlavento entre Hispaniola e Cuba. Aí os bucaneiros formaram uma confederação livre denominada "Confraria da Costa".

Continua à pág. 5-5

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