São Paulo, domingo, 7 de setembro de 1997
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Rumo ao cosmos

RICARDO BONALUME NETO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em seus 40 anos de vida, o programa espacial russo não perdeu a mania de assustar os norte-americanos. Mas o tipo de susto que vinha ou ainda vem da órbita terrestre resume a evolução política da humanidade nesse período.
Hoje, a estação espacial russa Mir está sendo financiada em parte pelos EUA. Sua obsolescência visível e os acidentes que ela parece atrair causam sobressaltos no pessoal da agência espacial americana Nasa (Administração Nacional de Aeronáutica e Espaço).
Mas nada se compara com o susto que ocorreu em 4 de outubro de 1957, no auge da Guerra Fria dos EUA com o país que então se chamava União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e do qual a Rússia era a principal república.
Naquele dia, os soviéticos colocaram em órbita da Terra o primeiro satélite artificial, o Sputnik-1. Era uma simplíssima esfera de 58 cm de diâmetro e 83,6 kg, com dois transmissores de rádio a bordo. Mas representou um choque brutal no orgulho americano.
O país que se dizia o líder de um "mundo livre" capitalista tinha que mostrar não só a superioridade do seu sistema econômico, como da sua ciência e tecnologia. E lá estava aquela bolinha de metal brilhante passando sobre a Terra.
Pior ainda, quem conseguia colocar um satélite em órbita também seria capaz de arremessar uma bomba nuclear a grandes distâncias, pois a tecnologia de foguetes para lançar satélites e a de mísseis balísticos para lançar bombas nucleares é basicamente a mesma.
Esse medo foi orquestrado nos EUA tanto para melhorar o ensino de ciência como para intensificar a pesquisa e desenvolvimento de novas armas.
Os soviéticos continuaram na dianteira com o segundo satélite, o Sputnik-2, que levou ao espaço em 3 de novembro de 1957 a cadela Laika, o primeiro ser vivo colocado em órbita.
E arrasaram ainda mais quando ganharam a corrida para pôr o primeiro ser humano em órbita, em 12 de abril de 1961, o cosmonauta Iuri Gagárin, a bordo de uma nave Vostok.
Os americanos não estavam parados, mas parecia. Como convém a um país capitalista, iniciaram a exploração econômica do espaço, ao lançar o primeiro satélite para comunicações, o Telstar, em 10 de julho de 1962. Logo depois, em 14 de fevereiro de 1963, os EUA lançam o Syncom-1, primeiro satélite em órbita geoestacionária (cerca de 36.000 km de altitude, o que o faz mirar sempre um mesmo ponto na superfície terrestre).
A corrida espacial era basicamente uma arma de propaganda política, e só depois disso se tratava de um empreendimento comercial ou científico.
O que realmente causavam manchetes eram os feitos de cosmonautas soviéticos ou astronautas americanos. Em 18 de março de 1965, Alexei Leonov, da Voskhod-2, foi o primeiro a fazer um passeio espacial fora da nave, a chamada "atividade extraveicular".
Mortes
Tamanha ênfase acabaria redundado em eventuais mortes. Em 27 de janeiro de 1967 morreram três astronautas norte-americanos, Virgil Grissom, Edward White e Roger Chaffee, em terra, a bordo da Apollo-1, depois que um curto-circuito causou um incêndio.
A tragédia também fez parte do primeiro vôo pilotado de uma nave Soiuz soviética, com a morte do astronauta Vladimir Komarov em 23 de abril de 1967.
Ele ganhou a duvidosa honra de ter sido o primeiro homem a morrer no espaço. Hoje as Soiuz são eficientes e seguras, depois de terem realizados dezenas de viagens.
Essas mortes deixaram claro que a conquista do espaço não era uma atividade sem riscos. Os cosmonautas e astronautas ganharam uma aura de heroísmo que perdura até hoje, apesar da maior frequência das viagens espaciais ter causado a impressão de rotina e a consequente perda de interesse na população.
Durante o regime comunista, os cosmonautas tinham regalias semelhantes às de outros heróis "proletários", como bailarinas e atletas.
Se a princípio homens como Gagárin e as primeiras tripulações americanas pouco faziam a bordo, com a criação de naves mais complexas e de estações espaciais, a atividade se tornou mais arriscada, dependendo em maior grau de perícia e coragem.
Um bom exemplo foram os consertos feitos a bordo, e do lado de fora, das estações da série Saliut e da Mir. Em um caso particularmente heróico, os cosmonautas tiveram de trabalhar em temperaturas glaciais enquanto tentavam fazer funcionar a parte elétrica de uma Saliut.
Ironicamente, apesar dos êxitos anteriores soviéticos em missões tripuladas, os EUA ganharam o prêmio maior da corrida, o pouso na Lua, graças às eficientes naves da série Apollo.
Frank Borman, James Lovell e William Anders, a bordo da Apollo-8, foram os primeiros homens a dar a volta à Lua, em dezembro de 1968. E, em 20 de julho de 1969, os astronautas Neil Armstrong e Edwin Aldrin, da Apollo-11, andam na Lua, enquanto Michael Collins fica a bordo do Módulo de Comando Columbia em órbita lunar.
Embora menos glamourosos, os programas espaciais não-tripulados obtiveram a maior parte do conhecimento sobre os planetas do Sistema Solar e seus satélites. Muitas dessas sondas foram soviéticas.
A primeira sonda a escapar da atração terrestre foi a Luna-1, soviética, lançada em 2 de janeiro de 1959, que passou pela Lua e se dirigiu ao espaço entre os planetas. Até os soviéticos e americanos acertarem com a tecnologia, houve sondas que se perderam no espaço, ou que se esborracharam na Lua em vez de pousarem suavemente.
A soviética Luna-9 fez o primeiro pouso suave, sem se arrebentar, no satélite terrestre. A americana Mariner-2 foi a primeira a chegar, em 1962, a Vênus. Mas o planeta foi alvo de várias sondas soviéticas da série Venera, que ampliaram muito o conhecimento sobre ele. Marte foi o outro alvo importante dos soviéticos.
Em 1986, foi a vez do cometa Halley ser estudado, notadamente pelas duas sondas soviéticas da série Vega e pela européia Giotto.
Conquistada a Lua, cada país deu rumos distintos ao programa espacial tripulado. Os soviéticos se concentraram em estações espaciais -nas quais cosmonautas chegaram a ficar mais de um ano em órbita- e os americanos com programas como o ônibus espacial ("space shuttle").
A União Soviética também criou o seu "shuttle", o Buran, mas abandonou o programa sem fazer vôos tripulados, provavelmente porque se percebeu que não seria razoável em termos de custo-benefício.
Os recordes de permanência no espaço rotineiramente são de russos. Em 22 de março de 1995, Valeri Poliakov voltou à Terra depois de inacreditáveis 438 dias a bordo da Mir.
A ênfase em propaganda foi até o final do comunismo. Os soviéticos levaram até suas estações espaciais cosmonautas dos outros países então comunistas: Bulgária, Hungria, Mongólia, Polônia, Cuba, Alemanha Oriental, Tchecoslováquia, Hungria, Vietnã e Romênia.
Cooperação
Uma primeira fase de degelo nas relações entre as superpotências aconteceu em julho de 1974, quando a Apollo-18 e a Soiuz-19 fizeram o primeiro acoplamento internacional em órbita.
As relações entre os dois países voltaram a esfriar durante os governos republicanos de Ronald Reagan e George Bush, mas com a transformação da União Soviética durante a era da "glasnost" de Mikhail Gorbatchov, e com o posterior fim do comunismo, começou uma nova era de cooperação científica entre os programas espaciais dos dois países.
Financiar o programa russo interessa aos EUA não só pelo que ele traz em si, mas pelo que evita -a fuga de técnicos que poderiam ir a países do Terceiro Mundo ajudar a produzir mísseis balísticos.
A Mir é o maior símbolo dessa cooperação, tanto que terminou cooptada pelo projeto que era seu rival americano, a futura Estação Espacial Internacional. O projeto era inicialmente chamado "Freedom" (liberdade, em inglês), e deveria reunir as nações do tal "mundo livre" americano.
Hoje o projeto não só inclui a Rússia, como também utiliza a velha Mir e os ônibus espaciais americanos como sua primeira fase, com o objetivo de obter experiência na cooperação em órbita.
Essa fase começou quando o cosmonauta Sergei Krikalev se tornou o primeiro russo a voar a bordo de uma nave dos EUA em fevereiro de 1994. As acoplagens de naves americanas com a Mir -são nove previstas- começaram com o ônibus espacial Atlantis em junho de 95.
E, curiosamente, a montagem da nova estação começará em 1998, com a colocação em órbita do primeiro módulo, o russo FGB (sigla para bloco de carga funcional), por um foguete, também russo, Próton. Mas, sinal dos tempos, esse primeiro módulo está sendo pago pelos americanos.

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