São Paulo, sexta-feira, 12 de setembro de 1997
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Vida surpreende em 'Um Instante de Inocência'

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DE CINEMA

É um costume dos filmes de Mohsen Makhmalbaf: a história que se conta é a da gênese de uma história. Era assim em "Salve o Cinema" e "Gabbeh", seus dois outros filmes exibidos comercialmente no Brasil. É assim em "Um Instante de Inocência".
Aqui, um ex-policial encontra o cineasta para cobrar a promessa de usá-lo como ator. O policial havia, 20 anos antes, sido apunhalado por Makhmalbaf -então um ativista político que lutava contra o regime do xá. O policial, mesmo ferido, conseguiu atirar em Makhmalbaf, que terminou preso.
Agora, o que existe não é um acerto de contas entre dois homens, mas entre dois momentos: o regime do xá e o dos aiatolás, o passado e o presente.
Assim, "Um Instante de Inocência" busca resgatar, ao mesmo tempo, uma história pessoal e uma história nacional -ambas perdidas na insânia que, acredita Makhmalbaf, comporta as rupturas revolucionárias e as sandices juvenis. Essa justaposição dá conta da modernidade do cinema iraniano -talvez o único que mereça hoje ser chamado de contemporâneo.
Não deixa de ser surpreendente -ainda hoje- que um dos regimes políticos mais retrógrados em matéria de costumes conviva com um pensamento cinematográfico de tal modo sofisticado. É algo ainda por explicar. De todo modo, a convivência não é nada pacífica. Há poucos meses, o recrudescimento da censura era preocupante.
Não que cineastas como Abbas Kiarostami e Makhmalbaf -os dois nomes internacionalmente mais conhecidos- sejam exemplos de subversão.
Mas ambos puxam a corda, suscitam tensões (o que é agravado pelo fato de serem populares em seu país). E a tensão, em "Um Instante...", fixa-se na oposição entre a flor que o policial pretende oferecer a uma moça e a faca que o jovem Mohsen aponta para ele. É o ponto central da narrativa.
Não que a flor levada pelo policial signifique a razão amorosa do regime do xá, e a faca, ao contrário, represente o terror xiita. Não é simples assim: são atitudes complementares, ambas inocentes.
O que realmente assustará os censores -e qualquer espectador- é a percepção de que, como o real e a ficção se fundem ao longo do filme, o que entendemos como realidade é um dado ficcional.
Ora, em dado momento, o reencontro entre policial e cineasta, amplamente planejado, sai dos eixos. A ficção escapa ao controle de ambos, já que, ao reconstituírem uma cena política de seu passado, descobrem que existiu, ao mesmo tempo, uma cena amorosa.
É então, quando a ficção se torna independente dos autores/atores, que o mundo se torna novamente imprevisto, e a vida se abre como território da surpresa.
Nesse sentido, "Um Instante de Inocência" tem muito a dizer, tanto aos governantes do Irã como a cada espectador em particular.

Filme: Um Instante de Inocência
Produção: Irã, 1996
Direção: Mohsen Makhmalbaf
Com: Mirhadi Tayebi, Ali Bakhshi
Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco - sala 3

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