São Paulo, sexta-feira, 12 de setembro de 1997
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Identificado o "vírus marrom"

GERALD THOMAS
EM PARIS

Não deixei que as intimidações dos amigos me desestimulassem a escrever sobre essa enxurrada de especulações, revelações, discussões, observações e prognósticos que vieram à tona com a trágica morte de lady Di. A imprensa marrom não passa por um tribunal assim faz muito tempo.
Mas, por incrível que pareça, esse terrível acidente ainda me fascina, pois existe algo ali ainda mais macabro que os fatos noticiados.
Essa tragédia teve, em seus raros momentos lúcidos, o fantástico dom de reunir dezenas de tópicos num único fato. Talvez o mais relevante de todos seja o desnudamento repentino dessa destrutiva e inútil "imprensa marrom".
Se todos os argumentos já foram esgotados? De jeito algum. As intermináveis discussões giraram em torno da hipótese, da ética, da conduta e de jogos semiológicos como, por exemplo, uma câmera fotográfica ser ou não uma arma. Mas evitou-se, por tudo que li e vi, uma breve consulta à história recente.
No mais, o termo "celebridade" ganhou uma conotação fúnebre, e tanto seus caçadores quanto os consumidores dessa caça estão se sentindo meio mal. Por parte da imprensa, poucas foram as impressões pessoais, poucas foram as autocríticas honestas, poucos saíram do círculo vicioso do fato em si e de seus derivados imediatos.
A hipocrisia de sempre consolidou-se, agora por meio de um véu vergonhosamente transparente. Escreveu-se pouco sobre o caráter dos editores que encomendam ou fabricam as matérias do tipo que resultou no acidente.
O editor do órgão mais marrom de toda imprensa marrom, o jornal-revista americano "National Enquirer", ganhou o troféu da "hipocricinismo" quando responsabilizou a "ganância pela vulgaridade" pela morte da princesa. No dia seguinte, ofereceu US$ 2 milhões ou US$ 3 milhões pelas fotos mais sangrentas da princesa agonizante.
Confesso que, com o passar dos dias, comecei a sentir na boca um leve sabor de vingança. Por que? O que vingança teria a ver com um acidente horrível e que entristeceu o mundo inteiro? Fui pego pelas imagens de tal forma que, mesmo agora depois do enterro, a morte da princesa ainda me parecia fictícia.
Uma imagem específica me impressionou mais que o Mercedes destruído: eu não tirava os olhos da foto dos paparazzi presos, enfileirados no caminhão Renault da polícia francesa.
Assim como surgiram, as sirenes de alerta sobre o perigo da imprensa marrom que brotaram dessa tragédia irão, infelizmente, cair no esquecimento. O infeliz estímulo sensacionalista que nutre o mundo contemporâneo logo estará descobrindo algum outro escândalo, guerra, homicídio, essas coisas que a indústria da notícia cava, eleva, destrói ou simplesmente fabrica.
Aliás, o assunto só está vivo ainda por causa de um surto de narcisismo da própria imprensa.
Ela, a imprensa, finalmente virou notícia e, portanto, aproveitou o espaço para discutir a si mesma, sua ética, seus limites, o ego complicado e o caráter duvidoso de seus editores. E esse maldito sabor de vingança? E a foto dos paparazzi presos?
Paris está linda, exuberante. Uma cidade com cultura é uma cidade orgulhosa. Aqui a imprensa marrom sempre foi forte, mas é específica e consegue-se viver a vida toda sem esbarrar nela.
Os jornais diários, as revistas semanais estimulam a arte, não competem com ela, e se sentem responsáveis por construí-la. Constroem mesmo criticando. Isso é difícil para um brasileiro entender, pois a mesma imprensa brasileira que cria mitos faz questão de destruí-los.
Não há mais crítica no Brasil, só ataques, geralmente pessoais. Fico pasmo. Passo mal. Acho propício continuar escrevendo essa coluna no Café de Flore, hoje fora de moda, mas com seu teto intato e repleto de almas criativas e revolucionárias de décadas passadas, como Sartre, Camus, Cocteau e Beckett.
O lado de fora do café estava cheio de turistas eufóricos, como sempre. Influenciado pelas almas residentes aqui, eu me convenci de que poderia identificar melhor esse que vem a ser o mais maléfico e mais mesquinho vírus que ora infecta a indústria e o comércio da notícia (principalmente no Brasil): o intenso negativismo, a torcida pela polêmica, pela fofoca, o "vírus marrom".
A tal foto não me saía da cabeça. É muito fácil se distrair em Paris. As pessoas primam pela diferença. "Vive la diference, vive la France". Toda Paris é atraente, monumental, criativa e viva! Até Hitler reconheceu isso e resolveu poupar a cidade, ocupando-a com, digamos, "respeito". Até Goebbels escreveu ensaios iluminados sobre seu passado glorioso e combativo.
Mas por que Hitler, agora, meu Deus? Por que Goebbels? Por que pensar nisso numa hora dessas?
Claro! A imagem dos paparazzi presos era uma cópia perfeita de uma foto de 1945 que mostrava um bando de oficiais nazistas de baixo escalão presos pelos aliados e levados nos mesmos caminhões Renault da Resistance. Tudo era igual. As caras, as posturas, o desnudamento de sua escrotidão, o fim de seu reino, tudo igual.
Em 45 prendiam os nazistinhas. Agora estavam prendendo a imprensa marrom. Quem dera as semelhanças parassem aí. Tanto um quanto o outro só sobrevive através do (falso) enaltecimento de fetiches populares e populistas. Fortalecem-se criando preconceitos, usando a tática da perseguição, da ridicularização, da humilhação.
A imprensa marrom é um dedo em riste que dedura e se nutre do fracasso (ou do sucesso) alheio. Hitler? Goebbels? Sim, igual. O que rege a imprensa marrom é a inveja, como um princípio. O doentio interesse em perseguir, isolar e dissecar suas "vítimas" lembra ou não as experiências médicas nos campos de concentração?
Mengele era só mais direto. A celebridade representa uma espécie de perfeição ariana que eles precisam reconstituir?
Triste? Muito.
Mas tem solução. Um rally. Como? O editor da "In-Veja" e seus comparsas do mundo inteiro se encontrarão em Paris. Todos alugarão o modelo mais veloz da Mercedes-Benz. Beberão alguns copos de vinho e entrarão no Ponte D'Alma a 197 km por hora. Eu estarei lá para fotografar tudo. Só que essas fotos não valerão um tostão.

E-mail: 103266.3640@compuserve.com

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