São Paulo, sábado, 13 de setembro de 1997
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Entre dois mundos

LAURA DE MELLO E SOUZA

Começa a ser publicada entre nós, com mais de dez anos de atraso, a "História da América Latina", organizada por Leslie Bethell, professor em Oxford. Como indica a introdução geral à edição brasileira, muitos pesquisadores do Velho e do Novo Mundo interessavam-se, nos anos 70, pela história da América Latina, o que justificava a empreitada britânica de organizar a coleção. Nela, os períodos mais recentes foram privilegiados em detrimento dos mais antigos. A época colonial contou com dois volumes, dos quais o primeiro é o de que se trata aqui. Colaboraram 13 autores, na esmagadora maioria europeus e norte-americanos. Um só brasileiro, Eduardo Hoornaert, integra a coletânea organizada pelo brasilianista Bethell.
Da América Latina colonial privilegiaram-se as relações entre as colônias espanholas e portuguesas e suas metrópoles. A parte mais densa, e a melhor, é a segunda, "A Europa e a América". A América espanhola foi melhor aquinhoada do que a portuguesa. Cinco capítulos tratam do nosso passado, em minguadas 160 páginas. Mais do dobro se debruça sobre o mundo hispano-americano, totalizando 378 páginas.
Por ser mais uma história da América espanhola, é possível tentar compará-la com outra. A "História do Novo Mundo", de Carmen Bernand e Serge Gruzinski, não é uma coletânea, mas obra escrita a quatro mãos por um europeu e uma latino-americana. Já no título, revela ser uma abordagem européia da história latino-americana. A especialidade dos autores -um mexicanista, uma estudiosa das sociedades andinas- leva-os a se mover apenas na América espanhola.
A "História" de Bernand e Gruzinski conta histórias para explicar a ocidentalização da América -conceito caro a ambos, mas sobretudo a Gruzinski, que o cunhou num livro particularmente brilhante, "La Colonisation de l'Imaginaire - Sociétés Indigènes et Occidentalisation dans le Mexique Espagnol, XVIe-XVIIIe Siècle" (1988).
O capítulo inicial, que aborda a América antes da chegada dos europeus, superpõe várias narrativas mitológicas, de sul a norte do continente hispano-americano. Já o segundo, "1492", atém-se à Espanha que se unificava sob o comando dos reis católicos, tomando Granada, espezinhando mouros e expulsando judeus. Um belíssimo capítulo, ritmado, colorido e um pouco irônico -Isabel de Castela é caracterizada como "o verdadeiro homem da situação", antepondo-se ao marido e ao irmão, sabidamente homossexual. Aos poucos, conforme descreve o cerco de Granada, vai apresentando as personagens que desembarcariam na América anos depois: Gonzalo Fernández de Oviedo, "no limiar da adolescência", "empregado no séquito do duque de Villahermosa"; Antonio de Mendoza, "nascido durante o cerco" -já que o pai, conde de Tendilla, trouxera consigo, como outros nobres, a mulher- "e destinado a um grande futuro ultramarino" (seria o primeiro vice-rei do Peru em 1551); Colombo, obstinado e pedinchão, atormentando Isabel até conseguir o financiamento de sua aventura marítima.
Essa interpolação entre Europa e América entretece toda a narrativa, frequentemente ancorada na trajetória individual dos agentes históricos. Em várias passagens, tem-se a impressão de estar lendo um dos grandes mestres da historiografia do século 19. São eles, sem dúvida, a inspiração; a diferença fica por conta do rigor documental e bibliográfico, e ainda da perspectiva antropologizante, bem característica de certa tendência historiográfica contemporânea. De qualquer forma, o resultado é fascinante e novo, abrindo perspectivas interessantes para os que escrevem manuais.
A "História" de Bethell é bastante voltada para as abordagens de cunho econômico e traz a marca da historiografia anglo-saxônica, onde o empirismo é marcante e as divagações literárias -abundantes no trabalho de Bernand e Gruzinski- banidas sem piedade. Desbastado da história política, uma das grandes ausentes, trata-se de um manual ao gosto clássico. Este, talvez, o seu aspecto mais meritório, que garante o caráter definitivo de alguns dos estudos nele presentes: os que melhor realizam a tendência, sem dúvida os dois capítulos de Elliott, expoente da historiografia contemporânea.
Tratando do império espanhol em dois capítulos, Elliott vale-se de elementos simbólicos, políticos, econômicos e centra a análise nas contradições próprias à época, quando a empresa comercial podia se transfigurar em cruzada; quando toda a Europa via a Espanha como senhora de um império mundial e Carlos 5º, o imperador, recusava-se a ver império fora do âmbito do Romano Germânico, que lhe coubera por meio da herança do avô, Maximiliano de Habsburgo; quando, enfim, a complexidade das civilizações americanas anteriores à conquista operava em favor dos espanhóis, a ausência de poder no Iucatã dos maias ou nas zonas fronteiriças de araucanos -ao Sul- ou de chiriguanos -ao Norte-, inviabilizando a colonização. Elliott não se furta à comparação com o mundo português, mostrando-se atualizado quanto aos reequacionamentos que vêm corrigindo a idéia que se tinha da expansão lusitana como eminentemente burguesa e comercial.
Tirante esta honrosa exceção, contudo, a comparação passa ao largo do volume. O que resulta são praticamente dois universos estanques, tratados por especialistas que não se colocam as realidades da outra metade latino-americana sobre a qual não fazem pesquisa. E não seriam poucos os elementos a comparar, como indicou Sérgio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil", lá se vão mais de 60 anos, e como reiteram os exemplos esparsos contidos no próprio volume. Por que os portugueses arranharam a costa feito caranguejos, nela plantando suas cidades principais, enquanto os espanhóis preferiram quase sempre as regiões mais remotas e inacessíveis -México, Puebla, Bogotá? Por que os espanhóis totalizavam, em 1620, 34 bispados em seus territórios americanos se, então, os portugueses só tinham um, o da Bahia? Por que as universidades, privadas e públicas, se fizeram presentes no mundo hispano-americano ainda na primeira metade do século 16 quando a América portuguesa, nem é bom lembrar, só as teve neste século?
Também mostram suas qualidades capítulos mais heterodoxos como os de John Murra, "As Sociedades Andinas Anteriores a 1532", de Nathan Wacthel, "Os Índios e a Conquista Espanhola", e de Murdo J.Macleod, "A Espanha e a América: o Comércio Atlântico, 1492-1720". Autor consagrado por seus estudos, Murra alia a análise dos relatos coevos à da arqueologia, queixando-se, neste campo, do atraso andino frente à pujança mexicana. Wachtel -de quem "La Vision des Vaincus - Les Indiens du Pérou Devant la Conquête Espagnole" (1971) marcou época na historiografia sobre a América- apresenta conexões com o grupo da Nova História e tem desenvolvido reflexões instigantes sobre os processos aculturativos. Neste capítulo, brilha nas análises sobre o complexo tema da desestruturação, captando com sensibilidade o processo que fragmentou estruturas originais do mundo andino, separou-as de seu contexto original, alterou-lhes o significado, mas permitiu que sobrevivessem modificadas, sustentando a hegemonia espanhola.
Macleod escreveu um capítulo ágil e cheio de interesse para o público leigo, igualmente atento à tonelagem dos navios, ao regime dos ventos e às angústias dos viajantes frente aos perigos sem conta que pontuavam a travessia marítima. As relações entre metrópole e colônia são abordadas por meio da "carrera da Índia", que até meados do século 17 corporificou a dependência americana ante as exportações espanholas. Sobre o pano de fundo mais macroscópico, o autor aborda as miudezas da vida cotidiana. Assim, a vivência absolutamente temporalizada das distâncias geográficas, função de um regime de ventos que era diferente na ida e na volta, fazendo com que, "nas mentes das pessoas da época", a América ficasse mais perto da Espanha do que esta de suas colônias; com que a Flórida, o mais distante porto das "carreras" destinadas ao mar das Caraíbas, se metamorfoseasse, na volta, no porto mais próximo a Sevilha. Na metade do século 16, quando Bartolomeu de Las Casas foi designado bispo de Chiapas, viagens entre Sevilha e aquela diocese podiam durar um ano e dois meses em virtude das paradas necessárias para abastecer o navio e desembaraçá-lo dos mortos e doentes, das voltas impostas pela iminência de ataque pirata, das calmarias irritantes ou das tempestades súbitas. "O que parece surpreendente hoje é que uma viagem tão longa, difícil e desagradável fosse uma experiência comum, e constituísse a ligação entre as colônias e a mãe-pátria" (pág. 348).
Se o tom mais empírico e tradicional do todo é quebrado, no tocante à abordagem da América espanhola, por brilhantes momentos de antropologia histórica ou pitadas de análise do cotidiano e da cultura material, o mesmo não acontece no que respeita o tratamento da América portuguesa.
O capítulo de Johnson sobre "A Colonização Portuguesa do Brasil, 1500-1580" é bastante correto e útil, empreendendo boas relações entre o sistema de colonização das ilhas atlânticas, o da África atlântica e o do Brasil. Os demais, contudo, pouco acrescentam. John Hemming queixa-se da pobreza material dos objetos produzidos pelos índios do Brasil, o que teria inviabilizado, pela sua deterioração, uma "boa" arqueologia. Para corrigir tal falha, valoriza os relatos quinhentistas, mostrando, diante deles, certa ingenuidade. Qualifica, por exemplo, os padres da companhia de "inteligentes missionários". Muitos deles o eram, sem nenhuma dúvida; nem por isso, contudo, devem ficar livres de ter seus testemunhos adequadamente "filtrados" por uma metodologia alerta. Hemming desconhece boa parte da produção etnológica mais recente, como os trabalhos de Eduardo Viveiros de Castro, e não incorpora na sua bibliografia crítica -que poderia ser atualizada sem dificuldade- o livro fundamental de John Monteiro, "Negros da Terra - Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo" (1994).
Frédéric Mauro, um dos maiores especialistas contemporâneos do Atlântico português, escreve 30 páginas de grande generalidade sobre "Portugal e o Brasil: a Estrutura Política e Econômica do Império, 1580-1750". A retomada do Brasil holandês, por exemplo, cai do céu. Ora, há muito se distingue o papel fundamental que os luso-brasileiros de Pernambuco desempenharam na guerra e se sabe que Portugal pensou seriamente em desvencilhar-se do Nordeste em nome de uma boa paz com a Holanda na Europa. Na década de 60, Vitorino Magalhães Godinho tratava disto num verbete elaborado para o "Dicionário da História de Portugal", de Joel Serrão. Na década de 70, Evaldo Cabral de Mello aludia ao assunto em "Olinda Restaurada", retomando o mote em trabalhos posteriores.
"Portugal e o Brasil: a Reorganização do Império, 1750-1808", de Andrée Mansuy-Diniz Silva, baseia-se nas grandes análises de cunho mais econômico disponíveis na década de 80, notadamente os trabalhos de Fernando Novais, "Portugal e Brasil na Crise do Antigo Sistema Colonial, 1777-1808" (1979), e José Jobson de Andrade Arruda, "O Brasil no Comércio Colonial" (1980). Defende como eles, a tese de que o comércio português atingiu seu ápice entre 1796 e 1808. Eu também concordo com a primazia brasileira na economia portuguesa do tempo de d. Maria e de d. João. Hoje, contudo, há muita gente que discorda, sobretudo em Portugal, e tal fato deveria constar pelo menos da bibliografia crítica, que, mais uma vez, está desatualizada. Não custava nela inserir o trabalhos de Valentim Alexandre, "Os Sentidos do Império - Questão Nacional e Questão Colonial na Crise do Antigo Regime Português" (1993), e talvez até o mais recente, de Jorge Pedreira, sobre "Estrutura Industrial e Mercado Colonial - Portugal e Brasil (1780-1830)" (1994).
Por fim, com apenas 16 páginas, "A Igreja Católica no Brasil Colonial", de Eduardo Hoornaert, dificilmente poderia dar conta do recado. Hoornaert é internacionalmente reconhecido como um dos maiores especialistas na história da igreja da América Latina. Neste capítulo, retoma de forma sucinta a tipologia da missionação na América portuguesa que já apresentara na "História da Igreja no Brasil", de 1977, e não avança, como fez em outros escritos seus, no sentido de melhor compreender o catolicismo brasileiro pelo seu viés mais popular.
Por tudo isso, e independente de seu formato mais tradicional, "América Latina Colonial - 1" é ponto de referência obrigatório no que diz respeito à abordagem da América hispânica. Sem o atrativo da "História do Novo Mundo" -trabalho correto do ponto de vista documental, mas ao mesmo tempo passível de ser lido como um romance-, os capítulos de Elliott, Murra ou Macleod constituem trabalhos sólidos, simultaneamente analíticos e informativos. Já quanto à América portuguesa, tudo muda de figura.
Se a bibliografia crítica sobre o mundo hispano-americano incorporou os trabalhos bastante recentes de Inga Clendinnen e de Sabine MacCormack, por que a bibliografia referente à América portuguesa deixou de lado os estudos de antropologia histórica e de religiosidade realizados nos últimos dez anos por Ronaldo Vainfas, Luiz Mott, Leila Mezan Algranti? A edição brasileira não comportaria maior destaque para a obra de Evaldo Cabral de Mello, que só aparece na bibliografia como o autor de "Rubro Veio" e de um livro inexistente, "A Guerra do Açúcar" (1975) -na verdade, aproximação ao subtítulo de "Olinda Restaurada - Guerra e Açúcar no Nordeste - 1630-1654"? Será que, já há muito findo o tempo dos galeões, as comunicações entre centro e periferia intelectual continuam dotadas de temporalidades distintas -no caso, a "carrera" que vem de lá, chegando mais rápido do que a "carrera" que vai daqui?

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