São Paulo, sábado, 13 de setembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O partido da invenção

AUGUSTO MASSI

A década de 30 foi marcada por estudos decisivos sobre o romantismo. Dentro deste contexto histórico, "De Baudelaire ao Surrealismo" (1933), de Marcel Raymond, configura, ao lado de "A Alma Romântica e o Sonho" (1937), de Albert Béguin, e "A Carne, a Morte e o Diabo na Literatura Romântica" (1930), de Mario Praz, um triângulo equilátero de clássicos sobre o romantismo.
Mas afirmar simplesmente que o trabalho de Marcel Raymond é um clássico da crítica literária corresponderia a enterrá-lo no cemitério das estantes. O fato de chegar ao Brasil com 60 anos de atraso, não diminui o interesse da obra, cuja abordagem panorâmica ultrapassa a condição de introdução à lírica francesa, para se constituir numa espécie de "promenade" crítica que persegue a linha de força que orienta o movimento poético a partir do romantismo.
Raymond foi um dos fundadores da Escola de Genebra que, por intermédio da consolidação da crítica temática, possibilitou o desdobramento de uma rica tradição intelectual à qual pertencem Albert Béguin, Jean-Pierre Richard, Jean Rousset, Jean Starobinski, Georges Poulet e Yves Bonnefoy.
Individualmente todos são bastante reconhecidos, mas, dada a precariedade da nossa vida universitária, sempre interrompida por hordas teóricas, raramente desenvolvemos uma visão de conjunto ou treinamos nossa percepção para a continuidade. Remontar à organicidade deste grupo significa apreender um notável equilíbrio entre espaço reflexivo comum e pensamento individual.
Resumindo, esta rede de relações de amizade e diálogo crítico, além de adensar as pesquisas e impulsionar novas articulações, oferece um alto grau de autonomia. Pertencem a esta família espiritual obras como "Forma e Significação", de Rousset, "As Metamorfoses do Círculo", de Poulet, "O Universo Imaginário de Mallarmé", de Richard, ou "Relação Crítica", de Starobinski. Os títulos deixam entrever que os críticos de inspiração temática não partilham propriamente um método, mas compartem uma atitude: adesão absoluta aos movimentos da obra.
Contornando o hábito da especialização, gravitam na órbita de fontes culturais e campos epistemológicos distintos: estilística, fenomenologia, hermenêutica, história das idéias. As afinidades convergem num estilo de base: esforço de compreensão, frase ponderada sem perda de naturalidade, terminologia técnica camuflada na prosa ensaística, integração do retrato à visada panorâmica.
A atualidade de "De Baudelaire ao Surrealismo" está ancorada nesta matriz teórica e estilística. Trata-se de um livro emblemático. A originalidade das escolhas e o acerto das balizas históricas repontam em obras como "A Estrutura da Lírica Moderna" (1956), de Hugo Friedrich (cujo subtítulo era "De Baudelaire ao Presente"), e "Os Filhos do Barro: do Romantismo à Vanguarda" (1974), de Octavio Paz. Vale a pena insistir neste ponto: a incorporação progressiva de suas teses, reforçada pelo uso elegante e quase didático de sua linguagem, não reduziu o refinado entrelaçamento interpretativo da obra à condição de ótimo manual.
Uma avaliação justa deveria colocar em perspectiva os postulados que vingaram: o romantismo como marco zero da modernidade, a influência de Rousseau e o papel central desempenhado por Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud. Dito isso, passamos ao livro em que estes elementos externos aparecem subordinados à idéia de uma linha de força cujo poder de irradiação parte de Baudelaire e completa seu ciclo com a revolta surrealista.
Mas, desde o início, o autor adverte: "Nossa finalidade, aqui, não é de ordem histórica; não nos interessa determinar relações de causa e efeito nem precisar filiações e influências. Para nós, trata-se de ver os dados essenciais de uma aventura, ou de um drama, do qual participou e participa um certo número de seres privilegiados; trata-se de observar as premissas de uma dialética que se desenvolveu através da história e que toma, à duração humana, o lugar e as possibilidades de sua realização, para desenhar, no plano do espírito, um ciclo ideal, um conjunto de atos e de aspirações entre os quais se revela uma misteriosa coerência". Como reduzir o peso do termo "plano do espírito"?
Se é possível desentranhar uma perspectiva histórica, fundada no encadeamento íntimo entre autores e obras, a sugestão de sistema literário se dá graças a percepção dos movimentos do espírito. Mais uma vez, herança romântica e crítica temática dão as mãos. A leitura de cada obra ou movimento é, simultaneamente, objeto de conhecimento e experiência ontológica. Encarada desse modo, a reflexão é moldada, em parte, pela intuição inicial. Esta talvez seja a grande lição que podemos extrair do livro: o bom crítico sempre toma o partido da invenção.
Outro ponto chama a atenção: o olhar panorâmico de Raymond é sensível tanto às semelhanças quanto às contradições. A seu favor, podemos dizer que captou, sem incorrer em reducionismo, uma tensão moduladora da história cultural francesa, as alternâncias entre revolta e restauração.
Escrito quando muitos dos autores analisados ainda estavam vivos, o crítico não se furta em analisar as épocas de refluxo: o "Romanismo", de Charles Maurras, que reivindica a tradição greco-latina como princípio fundamental das letras francesas, combatendo aqueles que teriam corrompido a língua e degradado o estilo poético; o "Naturismo", cuja profissão de fé clama pela retorno à natureza, refugiando-se num panteísmo e numa leitura "delicada" de Whitman e Nietzsche.
É com extrema finura que revela como o entroncamento entre a tradição simbolista e certa razão mediterrânica preparam a entrada em cena da poderosa personalidade poética de Valéry. A admiração nutrida pelo poeta, sobre quem escreveria anos mais tarde "Paul Valéry e a Tentação do Espírito" (1964), não impediu o juízo matizado: "Não é um iniciador que abre caminhos para uma poesia nova. Ele veio antes, como os clássicos, para completá-la".
No interior deste quadro de afinidades e confrontos é a que leitura notável de Raymond ganha em flexibilidade e precisão: "Trocar Valéry por Claudel é mudar de sistema solar, ceder à atração de uma nova gravitação, que rege um universo hierarquizado, no qual tudo tem valor e sentido. É passar da ilha da consciência pura para uma ordem resistente e concreta de 'coisas' puras, criadas e santificadas por um Deus onipotente".
Fechando o volume, "Aventura e Revolta" apresenta as correntes centrais da modernidade e algumas figuras que, ainda hoje são fundamentais para a nossa experiência poética: Apollinaire, Blaise Cendrars e Pierre Reverdy. Menos aristocrática que o simbolismo, a poesia moderna sonda o mistério no espetáculo do cotidiano: revelação à revelia. A ruptura e a melancolia libertária de Apollinaire, hoje injustamente eclipsado, está resumida no lirismo quase épico dos versos iniciais de "Zone": "Afinal estás cansado deste mundo antigo/ Pastora ó torre Eiffel o rebanho das pontes bale esta manhã/ Estás farto de viver na antiguidade grega e romana". É uma declaração de guerra.
O lugar central ocupado pela poesia francesa na passagem do século 19 para a primeira metade do século 20 autorizou Raymond a discutir os caminhos da poesia ocidental sem pisar fora do território francês. O surrealismo seria o canto do cisne. Ainda assim, no calor da hora, o crítico soube pinçar as novas vozes que selavam essa aventura do espírito: Henri Michaux e René Char.
A expressão "aventura do espírito" soa a ouvidos materialistas como uma terminologia vaporosa. Algo da fragilidade teórica do livro provém desta inflexão de caráter subjetivo e, por vezes, vago. Mas, para um poeta materialista e brasileiro, dos menores e dos mais expostos à galhofa, impõe-se uma verdade, crivada de ironia e cultivada no ceticismo, a poesia tornou-se inofensiva. É precisa tomar o partido da revolta e dos profetas.

Texto Anterior: Entre dois mundos
Próximo Texto: Silêncio corrosivo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.