São Paulo, sábado, 13 de setembro de 1997
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Carta aos leitores

RUBENS RICUPERO

"Matamos o tempo; o tempo nos enterra." Esse é o problema de jogar com o tempo: ele acaba sempre por ganhar a partida.
Dias atrás, ao falar em seminário no Instituto Braudel, em São Paulo, senti uma vez mais como é fácil ser mal interpretado ao tentar captar fator tão escorregadio.
Discutia-se o agravamento do déficit em contas correntes. Nos 12 meses encerrados em julho deste ano, ele foi de US$ 33,449 bilhões, ou 4,35% do PIB. Desde junho de 1996, quando era de 1,88%, vem crescendo mês a mês.
Diante disso, comentei existirem duas posições: a) o governo confia dispor de alguns anos, durante os quais as privatizações e os investimentos estrangeiros cobririam um déficit estabilizado em 3%, até que terminem as reformas para resolver o problema; b) os pessimistas temem que as privatizações se esgotem antes de terminado o ajuste e que os investimentos estrangeiros agravem a situação por gerarem a curto prazo aumento da importação de bens de capital e insumos. Além disso, 79 projetos de investimentos examinados na Unicamp revelariam que a imensa maioria visa ao mercado interno e não tende a gerar exportações.
De minha parte, disse ser esse o tipo de problema no qual os dois lados tinham alguma razão. Não necessariamente contraditórias, as posições poderiam ser conciliadas por políticas capazes de gerir um tempo razoável, mas não elástico.
Meu tema era "O futuro do Brasil no comércio e no investimento". Voltei a atenção para o último aspecto, pois ele é que condiciona o primeiro. Constatei de início que o governo aparentemente voltara a investir na remoção dos estrangulamentos, sobretudo de transportes, do custo Brasil, que afeta a competitividade das exportações.
A respeito dos investimentos de empresas nacionais e estrangeiras já instaladas, louvei-me no relatório CNI/Cepal, o qual conclui que "as perspectivas de expansão do mercado interno continuam a constituir o principal determinante dos investimentos industriais no Brasil". Para os empresários ouvidos, "o atual nível da taxa de câmbio pesa negativamente em suas decisões de investir", assim como as altas taxas de juros internos.
Concentrei-me, em seguida, nos novos investimentos das transnacionais. Cheguei aos seguintes resultados:
1º) Na primeira metade dos anos 90, mais de dois terços dos investimentos estrangeiros foram para o setor de serviços, não gerando exportações (embora possam contribuir para atenuar o custo Brasil).
2º) Em 95-96, o mercado doméstico representou, em média, 90% das vendas das transnacionais manufatureiras no Brasil e só 10% da produção foi exportada.
3º) O investimento americano no Brasil é muito mais orientado para o mercado interno (que absorveu 83% das vendas de suas filiais em 93) do que para o exterior (que só recebeu 17% em época na qual o câmbio ainda ajudava a produzir megassaldos).
4º) Em contraste, em todos os demais países, desenvolvidos ou não, exceto talvez na Índia, as filiais americanas exportam em média de 30% a 40% de sua produção.
5º) Comparada ao México, a propensão a exportar das filiais americanas no Brasil era, em 77, mais alta, se igualara em 82, mas, a partir de 86, se reduziu à metade (17% contra 35%) e não mais se alterou.
6º) A parcela principal de investimentos industriais, a do setor automobilístico, é dirigida ao mercado interno e do Mercosul, em oposição aos investimentos que fizeram do México a plataforma de exportação para o mercado dos EUA; além disso, em termos mundiais, é setor saturado, com sobreoferta estimada em 22 milhões de veículos em 2002.
À luz desses fatos, é temerário pensar que os investimentos estrangeiros vão automaticamente resolver o desafio do déficit. Mesmo porque não só eles pesam nas importações de insumos e bens de capital como já começam a engrossar a remessa de lucros e dividendos para o exterior. No primeiro semestre deste ano, essas remessas quase quintuplicaram em relação a igual período de 96 (US$ 2,992 bilhões contra US$ 594 milhões).
Que fazer? Reprimir as importações com protecionismo e cotas é proibido pela OMC. Fazê-lo com recessão é contraproducente: interrompe o crescimento, agrava o desemprego e atrasa os investimentos que possibilitarão voltar a competir e exportar.
A solução para conciliar a posição do governo e a dos pessimistas é aumentar a propensão a exportar das transnacionais e da economia como um todo. Isso nada tem de impossível, pois uma e outra são baixas, muito inferiores ao potencial.
Como diz o relatório CNI/Cepal, o equilíbrio externo pode ser melhor obtido em contexto de expansão econômica mais rápida, estimulante dos investimentos, do que com estagnação destes últimos. Para isso, é preciso, mediante a mobilização, acelerar as reformas que tornem desnecessária a apreciação cambial e aumentem a competitividade. Em outras palavras, reduzir a vulnerabilidade externa ao mínimo de tamanho, no mínimo de tempo.
O "Financial Times", em artigo e editorial sobre minha apresentação, deu ênfase ao perigo de especulações contra o Real, por analogia com os países asiáticos. A fim de corrigir essa interpretação, escrevi carta ao jornal acentuando que minha ótica era a dos investimentos. Restabelecido, porém, o equilíbrio, é meu dever de cidadão brasileiro, não como funcionário internacional ou ex-ministro com alguma participação no lançamento da moeda, trazer a debate essas observações. Temos tempo, certamente. Quanto, não sei. Melhor é não nos fiarmos nele. Pois, como lembrava Camões:
"Afinal tudo passa,
Não sabe o tempo ter firmeza em nada.
E a nossa vida escassa
Foge tão apressada,
Que quando se começa, é acabada."

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