São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997
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O abalo global do tempo

PHILLIPE SOLLERS
ESPECIAL PARA "LE MONDE"

Não, Faulkner não é esse romancista regionalista, prolixo e mal pontuado, confuso, ambíguo, puritano, machista e, talvez, insuficientemente anti-racista, que nos é apresentado, ao longo do tempo, sobre o fundo de figuras folclóricas do Mississippi, num colorido antigo, quando se perpetuavam a lembrança malsã da escravatura, o martírio dos negros, a arrogância dos brancos. Não, Faulkner não faz parte do passado de amarguras dos Estados Unidos, Guerra de Secessão mal digerida, nostalgia pseudo-aristocrata, culto aos fantasmas, opondo-se ao futuro radiante de uma democracia planetária. Não: Faulkner é um autor candente, atual, ainda e sempre muito a frente de nós.
Que um autor, entre 30 e 40 anos, tenha sido capaz de escrever tantas obras-primas (de "O Som e a Fúria" até "Absalom, Absalom!") já é um problema. Que ele o tenha feito à margem, como se fizesse vista grossa a tudo (tudo: a sociedade de seu tempo em franca turbulência, a crise mundial, a substituição da realidade por Hollywood, a rápida aproximação de uma nova catástrofe), realça um puro mistério. Sartre, já em 1938, vê muito bem o risco, o perigo. De saída, ele acha Faulkner "deslealmente secreto". Ele o admira, mas desconfia, prefere Dos Passos, mais social, mais humano, mais comunicativo. Faulkner? "Dir-se-ia 'muitos gestos', como se dizia 'muitas notas' a Mozart."
Desde então, Faulkner é "muito". Será por que Malraux, numa fórmula que ficou célebre a propósito de "Santuário", falou de "introdução da tragédia grega no romance policial" (o que foi uma violenta comoção histórica)? Será por que Édipo, entre outros, sairia dele abalado? Sim, sim, algo estremece, as fundações são atingidas. Faulkner, nos previne Sartre, descreve um mundo em "trompe-l'oeil". Este obcecado, surgido sabe Deus de onde, parece não ter opinião alguma sobre nós, sobre o amanhã. Será que ele nos engana? "O que ele faz quando está só? Será que se adapta à tagarelice de sua consciência muito humana? Seria preciso conhecê-lo." Dito de outro modo: ele é verdadeiramente "humano"? Em pleno século 20, num autor de semelhante força, apoiado com desenvoltura, como se estivesse em sua própria casa, na Bíblia e em Shakespeare, isso é bem razoável; Sartre começa a querer curar-se de sua admirável "Náusea". Conseguirá? Infelizmente, é provável.
É preciso dizer que os romances de Faulkner têm por que intimidar. Nada de narração em ordem, pontos de vista múltiplos e baralhados, uma explosão do tempo e da consciência clássicos em benefício de um presente monumental e de um passado em torvelinho. "Nada sucede", diz Sartre, "a história não se desenrola: ela é descoberta debaixo de cada palavra, como uma presença embaraçosa e obscena, mais ou menos condensada segundo os casos".
Ora, o "desenrolar" mudou de sentido e conduta -não nos conformamos mais, sobretudo, à lógica do cinema. Ela "se desenrola", a história, ao redor dela mesma, para frente, para trás, de novo para frente: ela titubeia, mergulha, afasta-se, interroga-se. O progresso não é, especialmente, a sua bússola. O passado não é uma lâmina rasa, mas uma floresta. Algo sem precedentes acaba de ocorrer ao Tempo. Sartre, imediatamente, sente que Faulkner é o exato contemporâneo de "Ser e Tempo", de Heidegger. Faulkner, romancista metafísico? "Uma técnica romanesca remete sempre à metafísica do romancista (...). Ora, salta aos olhos que a metafísica de Faulkner é uma metafísica do tempo." Sim, a menos que se trate aqui, precisamente, de uma explosão do tempo contido, até então, pela metafísica. É grave, muito grave. "Os monólogos de Faulkner", escreve ainda Sartre, "fazem pensar em viagens de avião cheias de quedas no vácuo".
Atenção, vertigem. O que ocorre ao tempo é insólito, talvez monstruoso, um abalo global (mas poderíamos duvidar disso com a aparição de Proust, Joyce e mesmo Céline). O que querem, todos estes escritores? "Mutilar" o tempo, "decapitá-lo"? Privar-nos da futura mudança voluntária e consciente? Impedir os amanhãs que cantam, o ser social em curso -o próprio homem, a quem cumpre, como de hábito, educar, retificar, aperfeiçoar? Sartre escreve: "Para explicar o passado, a tarefa do historiador não é, a princípio, pesquisar-lhe o futuro?". Mas e se o passado não estivesse mais "submetido" ao futuro? Ah, não, isso não! Muitas notas!
São raros os escritores que relemos com a sensação de que nunca o lemos o suficiente, com o coração aos pulos. Faulkner é um deles: encanto, feitiço, contágio físico, paraíso constante de detalhes. Abram "Torre de Controle" ("Pylon") e estarão num campo de aviação onde ocorrerá a tragédia de pilotos acrobatas e pára-quedistas de competição. Vocês estarão muito além das quedas no vácuo. Logo de início, embarcamos na atividade frenética e publicitária de um aeroporto, ouvimos com nitidez o caos dos ruídos, motores, vozes, locutores, alto-falantes. E então, após um longo desvio, eis os aviões: "Silenciosos, esbeltos, pérfidos, esguios, imóveis, com sua cintura de vespa, sua leveza de vespa, eles pareciam estáveis sem peso, como se feitos de papel, com o objetivo único de pousar nos ombros dos homens, em formações que os rodeavam".
Eis aí: "Torre de Controle" (e esta é, talvez, a razão pela qual ele é tão pouco discutido) é um romance sobre a expansão do reino da Técnica, eficácia, velocidade, jornalismo. Não há mais tempo "para nada": são precisos as performances, as novas sensações, o drama, uma motorização geral dos corpos e do pensamento. Essa nova tirania tem anti-heróis sacrificados: os pilotos. Sua testemunha fantasmática, fascinada, invejosa, nauseada: o repórter. Suas vítimas inocentes: o menino que não sabe nem mesmo quem, dos dois pilotos, é o seu pai, a mulher livre (Laverne), condenada, como sempre, ao rancor da multidão dos espectadores.
O mundo está entregue às máquinas e à informação. Faulkner revelou que, com "Torre de Controle", quis escrever uma "lenda da velocidade em si". Era, também, uma homenagem fúnebre a um de seus irmãos, morto num acidente de avião. Depois de mais de 60 anos, o livro é de uma grandeza pungente. É, se quisermos, a introdução de Shakespeare no universo das corridas e da imprensa. Ou o contrário. Como "Absalom, Absalom!" é a intrusão da nova violência erótica na Bíblia. Ou o contrário. Tudo, sem cessar, é análogo e diferente sob o sol. Alguma coisa está fixa, petrificada, mas fala: é uma mulher, Rosa Coldfield, uma rosa de gelo no calor escaldante do verão. Ninguém melhor do que uma mulher pode representar o tempo desnorteado, tagarela, morto, repetitivo, efervescente e, no entanto, estático (Beckett recordará isso em seu esplêndido "Pas Moi"). Abram "Absalom, Absalom!" -e serão tomados pela frase floral e exuberante de Faulkner, sua cadência, sua penetração, sua precisão de som, de temperatura, de atenção. A glicínia, os pardais, a poeira, a obscuridade do recinto, a testemunha hipnotizada (Quentin), e, depois, a ancestral faladora: "Sua voz não cessava, simplesmente desaparecia".
Sartre definira o estilo de Hemingway, outro aventureiro americano do fim da metafísica: "Hemingway possui um modo sincopado de narração, que faz cada frase sair do nada por um tipo de espasmo respiratório". Faulkner faz exatamente o contrário: as suas frases, em forma de passes magnéticos cada vez mais profundos, e o seu método em espiral lançam no nada, a cada instante, uma superabundância de ser -ele sopra sobre nós a luz ofuscante do nada. Essa negatividade febril, diligente, saída como que do "odor rançoso de velha carne feminina há muito enclausurada em sua virgindade", esclarece uma estranha lei, de que as religiões são apenas derivados mais ou menos insensatos: "Uma acusação viva, onipresente e mesmo transmissível contra todo princípio masculino".
Os homens obedecem a essa lei? Claro, por isso eles se degolam. Misoginia de Faulkner? De modo algum. Ao contrário. As mulheres são as primeiras vítimas desta barbárie de base (ainda que "elas sempre tenham preferido a morte à paz"). As religiões? Aquela que mostra Faulkner, em sua devastação psíquica e física, é o cristianismo em sua crispação protestante: "A música, como toda música protestante, guarda sempre alguma coisa de severo e de implacável, de premeditado e de frio. As ondas sonoras, com menos paixão do que imolação, exigem, imploram, a recusa do amor, a recusa da vida, proíbem-nos aos outros, reclamam a morte, como se a morte fosse o maior dos benefícios". E ainda: "Prazer, êxtase -eles parecem incapazes de suportá-los. Para fugir deles, eles conhecem apenas a violência, a embriaguez, as batalhas, a prece". E ainda: "Nessas condições, por que a sua religião não os levaria a crucificar a si mesmos, e a crucificar-se mutuamente?".
Estamos, aqui, em "Luz em Agosto", sem dúvida o mais "bem-sucedido" dos romances de Faulkner. É o pastor Hightower que fala, e ele sabe do que fala. Ele tem sua frase-chave: "Agora, em breve". Ao cair da tarde, os cavalos da Guerra de Secessão passam à sua frente como uma visão. Christmas, o branco-negro que se tornou assassino de Joanna Burden, tem também a sua frase-chave: "Ela não tinha de se meter a rezar por mim". Faulkner projeta-se intensamente nestes dois personagens, e com razão.
A fuga de Christmas (este Cristo que perturba a comunidade, já que ele pertence, a um só tempo, aos dois lados, o que lhe valerá a paixão erotômana da mulher branca negrófila, depois a castração dos brancos negrófobos) é uma ocasião concebida para fazer sentir o que é o tempo liberto, não computado, respirado de todos os lados: "Parecia-lhe que um dia seria seguido de um outro dia, cheio de fuga e de pressa, sem noite entre eles, sem intervalo para repouso, como se o sol, em vez de se pôr, voltasse atrás e refizesse sua rota no céu, sem ter tocado o horizonte". Mas também: "Parecia-lhe que, enquanto permanecia ali, sentado, o dia dourado o contemplava com indolência, como um gato amarelo deitado e sonolento". Faulkner é o pastor expulso de seu templo pelos fiéis; ele "é" o assassino, no fundo inocente, de quem se suspeita, desde a infância, saber demais sobre a sexualidade reprimida dos atores (Christmas, com 5 anos, surpreendendo a nutricionista em seu quarto, enquanto ela faz amor, está escondido num armário e come "o verme rosa" do dentifrício; Christmas, utilizado como objeto sexual pela proprietária branca que deseja, por fim, reconduzi-lo à sociedade e a Deus).
O pastor vê "todas as igrejas do mundo (...) como uma muralha erguida contra a verdade e contra a paz, aberta tanto ao pecado quanto ao perdão, que é a vida do homem". Christmas, por sua vez, repete: "Queria apenas uma única coisa, a paz". Mas não existe paz, nunca existiu, nunca existirá. Os falsos profetas não cansam de exaltar a si mesmos, de declamar, perorar, especular; Faulkner, verdadeiro visionário, não foi um falso profeta: eis por que ele continua legível, como "Macbeth", "Hamlet" ou ainda Isaías, Ezequiel, Jeremias. Revelação do "ser-aí": "Postava-se lá, simplesmente, no meio de não sei que suprema destilação do dia impenitente, ofuscante, quase tropical, não sabendo mais se piscava os olhos ou não, no meio de uma implacável infiltração que os próprios muros não podiam conter, e que vinha da atmosfera que o envolvia, odores de peixe e café, de açúcar e de frutas, de cânhamo e de pântano (...)" (trata-se do repórter, em "Torre de Controle"). Sem dúvida, as duas palavras que mais se repetem nesses relatos ativos e meditativos são "implacável" e "imponderável". O implacável abre-se ao imponderável. Suspense, trégua, liberdade vazia perdida no tempo, hino.
Assim são os cavaleiros sulistas, mortos há tempos, que aparecem ao pastor ferido em "Luz em Agosto": "Eles turbilhonam e desaparecem. A poeira se levanta, aspirada rumo ao céu, e se apaga na noite que acaba de chegar. E, contudo, debruçado sobre a janela, a sua enorme cabeça enfaixada e sem volume acima das manchas gêmeas de suas mãos sobre o parapeito, ele tem a impressão de ouvi-los ainda: os clarins selvagens, os estalidos dos sabres e o tropel evanescente dos cascos".
Ou ainda, para descrever o rosto de Chistmas morto, que seus assassinos serão obrigados a vislumbrar pelo resto da vida: "Estará sempre lá, sonhador, tranquilo, constante, sem nunca empalidecer, sem nunca oferecer algo de ameaçador, mas por si mesmo sereno, por si mesmo triunfante". Esta é a estranha luz de Faulkner a atravessar o século.

Tradução de José Marcos Macedo.

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