São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997
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Habitantes de uma cidade eterna

WILLIAM KENNEDY

Quando William Faulkner morreu, em 1962, escrevi seu obituário para o jornal em que trabalhava, o "San Juan Star", de Porto Rico. Eu fora co-fundador do jornal, mas depois de dois anos como editor geral, passei para uma subeditoria: eu havia começado um romance, e descobrira que não podia dar conta de dois encargos ao mesmo tempo -e estava decidido a me tornar romancista, não importa a qual preço: afinal de contas, Faulkner havia declarado que "o escritor deve saber que a coisa mais vil do mundo é o medo. (...) Quem tem uma tarefa a cumprir na manhã seguinte não tem muito tempo para o medo...".
Meu romance era sobre uma família, os Phelans. Por isso lia com atenção um outro romance sobre uma família, "O Som e a Fúria". Eu lia Faulkner há anos e, como era de se esperar, algo da sintaxe faulkneriana penetrara nas minhas frases: eu exultava quando conseguia escrever uma frase de página e meia com apenas duas vírgulas. Sabia que isso era um erro, e acabei por me livrar de toda essa bagagem.
Havia um outro aspecto de Faulkner do qual eu tinha que me distanciar: o modo como seus personagens transitavam de um romance para outro. Por essa época, eu estava começando a descobrir Albany, minha cidade natal, e justamente por meio do romance sobre a família Phelan; mas eu sabia tão pouco sobre Albany que jamais pensei conscientemente em criar todo um cosmos ficcional particular. Escrever um romance já era uma enormidade -o que dizer de uma saga. Ao passo que Faulkner, no dizer do seu biógrafo, F. Karl, era "a figura mais próxima a Balzac jamais produzida pelos EUA".
E agora, depois de sete romances e uma peça, além de um outro romance e mais uma peça em preparação, todos eles interligados no que eu chamo de "ciclo de Albany", sou chamado por alguns resenhistas de "o William Faulkner de Albany"!
Faulkner nasceu em New Albany, Mississipi, mas agora ele está ligado à velha Albany, por intermédio do que eu aprendi com ele sobre geografia literária: recriei Albany a partir do modelo abstrato de Yoknapatawpha County. Imaginei várias gerações de várias famílias (além dos personagens "soltos") que habitam um mesmo lugar, e sobre cujos destinos eu tenho controle absoluto.
Faulkner falava com frequência sobre o tempo em suas obras; certa vez, declarou que: "Não há época alguma... só o momento presente, no qual incluo tanto o passado quanto o futuro, e isso é a eternidade". Quanto a mim, posso dizer que tudo o que escrevi diz respeito ao presente, ao momento em que escrevo, pouco importa o momento cronológico em que se dá a história.
Quanto ao rótulo de "regionalista", Faulkner escreveu o seguinte numa carta a Cowley: "Tendo a pensar que meu material, o Sul, não é muito importante para mim". E, falando na Universidade da Virgínia, ampliou sua posição: "As pessoas são as mesmas (...) o meio social, a história, o ambiente podem mudar os termos do comportamento, não o ato em si, de modo que o escritor simplesmente usa o ambiente que lhe é mais familiar...".
De fato, alguns críticos crêem que o pior dos romances de Faulkner é "Uma Fábula", livro em que ele abandona o ambiente bem conhecido de Yoknapatawpha County, contraparte ficcional de seu Mississipi natal. Robert Penn Warren disse que o livro fora "concebido abstratamente; uma idéia trabalhada dedutivamente, que se perde totalmente nos momentos críticos. (...) À maneira de Anteu, Faulkner só conseguia lutar com os pés sobre a terra -sobre a terra natal (...). Só naquele mundo ele era capaz de encontrar as imagens seminais que elevariam seus sentimentos mais profundos a uma visão nítida...".
Creio que, se viesse a abandonar Albany a fim de escrever um romance ambientado em Madri ou Havana, eu produziria algo assim como uma história contemporânea de amor, intriga, traição, erros mortais etc. Mas temo que lhe faltaria aquilo que julgo essencial a qualquer história: a vida palpável, a vida que foi e agora de novo é.
Essa atitude é um elemento central em minha atenção ao passado e a um único lugar. Quero sobretudo seguir as vidas dos meus personagens, que raramente morrem para sempre. São os habitantes da minha cidade eterna, seiscentos caracteres à procura de seu autor.

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