São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997
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O primeiro cineasta da 'Hollywood africana'

LÚCIA NAGIB
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O cineasta Idrissa Ouédraogo é um verdadeiro fenômeno em termos de África, e não apenas. Poucos cineastas no mundo equiparam-se a ele em produtividade: 17 filmes, 7 dos quais de longa-metragem, em pouco mais de uma década, e uma coleção de prêmios em Cannes e demais festivais do mundo. Considerando-se sua procedência de Burkina Faso, pequeno país do oeste africano, região onde o cinema é ainda incipiente e as produções nacionais raramente ultrapassam três longas por ano, seu caso se torna excepcional.
Ouédraogo talvez seja, de fato, na África negra, o primeiro cineasta no sentido pleno do termo, com formação específica na área de cinema e imbuído de um conhecimento técnico e autoral que o coloca em posição privilegiada em relação a seus conterrâneos. Seus primeiros filmes não diferem em essência dos de seus colegas, que procuravam registrar a face de um continente desprezado e ignorado. Também em Ouédraogo predominou, de início, a preocupação documental e de registro das paisagens e dos costumes de sua terra natal (o povo mossi).
Mas já em seus primeiros curtas-metragens ficava claro que ele se obstinava na construção de um estilo, abolindo desde logo a modéstia e a submissão e conferindo à imagem de seu povo um tom solene, hierático, frequentemente teatralizado. Raras vezes uma língua africana impôs-se com tanta dignidade como nas obras-primas que são "Yaaba" e "Tilai" (ambas premiadas em Cannes e já exibidas no Brasil). Nunca a paisagem árida do Sahel mostrara como nestes filmes seu potencial de palco de dramas universais, com o trágico e o cômico atingindo ápices shakespearianos.
Como é natural, hoje Ouédraogo ultrapassou a África. Seus dois últimos longas, "Le Cri du Coeur" (O Grito do Coração) e "Kini et Adams", ambos falados em inglês e apontando uma tendência internacionalizante, vêm causando dissidências entre os críticos, que por vezes os consideram espécies de "traição" ao estilo anterior, supostamente mais "africano". Nesta entrevista, Ouédraogo rejeita tais críticas, invocando a liberdade de criação. E aborda ainda problemas polêmicos, como a imagem da mulher, o sexo e a nudez no cinema africano.
*
Folha - Como você explica que Burkina Faso tenha se tornado o centro cinematográfico da África? Sei que existem muitas etnias distintas no país, mas haveria entre elas algum traço cultural, alguma tendência ao cultivo da imagem?
Idrissa Ouédraogo - Acredito que a razão seja simplesmente política. É um país que desde 1969 teve a coragem de nacionalizar suas salas de cinema e criou as Jornadas de Cinema da África, dando possibilidade de exibição aos filmes africanos. Foi uma tomada de consciência muito precoce, em comparação aos outros países africanos, que lhe conferiu afinal o título de "Hollywood africana".
A primeira atitude foi tomar 15% da receita bruta das bilheterias dos cinemas para constituir um fundo de financiamento ao cinema. Por ter feito isso desde os anos 70, Burkina pôde, pouco a pouco, equipar-se, comprar material, formar pessoas. Mas ainda não é suficiente, porque com o tempo o número de cineastas cresce, o país é pequeno, o consumo do cinema é quase um luxo -90% da população vive longe dos cinemas. Isso acontece em quase todos os países da África, há muita gente no campo, onde não há eletricidade.
Eis por que a condição para que um cinema nacional possa sobreviver é, antes de tudo, produzir com seus próprios meios. Se o filme custar milhões de francos, não será possível, pois o poder público tem também de cuidar da educação, da construção de estradas, da saúde, quer dizer: além de ter seu lugar, o cinema deve ser acessível. Por isso, hoje, o vídeo aparece como a base do começo de uma industrialização em nosso país.
Folha - Hoje em dia há também a globalização, que obriga os cineastas a atingirem um orçamento compatível com a média mundial, que está muito elevada.
Ouédraogo - Isso mesmo. Eu acabei de rodar em super 35 mm, em scope, com dolby, os atores são muito melhores, mas é porque eu tenho um grupo atrás de mim. Pela primeira vez, depois de fazer sete filmes, encontrei pessoas que, a partir de um breve roteiro, resolveram me dar a chance de ir mais longe. Mas isso não acontece todos os dias. Sou por um cinema em tela grande etc., mas, no limite, talvez o que eu tenha a dizer seja muito mais importante do que a técnica, como aconteceu com a "nouvelle vague" ou o neo-realismo italiano, eram pessoas que tinham o que dizer e o fizeram com meios simples. Hoje, há uma necessidade vital para os africanos de se exprimir por qualquer meio que seja. O combate hoje em dia, para mim, não é o tipo de suporte, mas ter em mente que, se não se tomar uma atitude, logo estaremos excluídos de tudo. Ora: o vídeo, apesar de tudo, ainda nos é acessível.
Folha - Você me parece um autor, um verdadeiro cineasta, o que não é comum na África. Há muitos escritores, cantores, artistas de diversas formações, mas gente que se formou com cinema é raro.
Ouédraogo - Eu tive a sorte de ter estudado na Escola de Cinema de Ouagadougou (Burkina Faso) e depois no Institut des Hautes Études Cinématographiques (Idhec), de Paris. Quer dizer, muito cedo tive um olhar escolar sobre o cinema, aprendi o que é um estilo, o que é um autor, o que é o cinema, enfim. A escola me deu a possibilidade de acelerar, tendo eu vindo de um povo ao qual o cinema chegou muito tarde. Não tive uma educação cinematográfica como meus filhos, que podem hoje ver filmes na televisão, mesmo se vi alguns filmes, não tive uma educação nesse sentido. Assim, a escola foi um atalho que encurtou o caminho de alguém que chegou ao cinema com 24 anos.
A escola me colocou ainda uma questão fundamental: por que fazer cinema? Foi quando percebi que uma das prioridades do nosso cinema é que, se queremos ser compreendidos -com a multiplicidade de línguas que existem e as diferenças regionais-, a imagem deve ser acessível a todo mundo. Por isso o silêncio tornou-se para mim um recurso importante. Venho de um país onde há mais de 40 línguas e quero fazer filme para toda essa gente, cheguei mesmo a fazer uma tese sobre isso, que chamei de "documentário ficcionalizado". Ficção, porque monto uma cena, e documentário, porque falo da realidade das pessoas. Os atores com que trabalhei não são profissionais, e não podem representar senão suas próprias experiências. Então eu não podia fazer filmes que fossem além disso.
Folha - Como você vê a modernização na África e todas as culturas tradicionais que estão se perdendo em função dela? Às vezes tenho a impressão de que você é bastante crítico com respeito à tradição, em seus filmes.
Ouédraogo - Acredito que a tradição não se perde jamais. O perigo é querer manter a todo custo a terra africana na idade da pedra talhada. No passado, havia um certo número de leis de costume, hoje vivemos no mundo com aquilo que aprendemos com os outros, com seus aspectos positivos e negativos. Basta rejeitar os aspectos negativos e adotar os positivos. A verdade é que na nossa própria cultura e tradição há aspectos reacionários e imundos, como a excisão. A excisão não pode se justificar pela tradição, pelo fato, por exemplo, de que no passado os homens achavam que a mulher não-excisada ficava muito sensível e poderia enganá-los quando eles partiam para caçar. Qualquer explicação, mesmo científica, para isso hoje em dia não é mais possível ou admissível. O casamento forçado é outro costume injustificável, há muitos aspectos da tradição que não são bons.
O que é preciso é dar lugar na mídia, nos jornais, no rádio, na televisão, para que a tradição possa se exprimir também e se confrontar com a modernidade. Desse modo, ela existiria de uma maneira democrática. Os contos orais e os provérbios devem ser ensinados nas escolas, a tradição não pode ser excluída da informação global de um país. Evidentemente é preciso adaptá-la, ao rádio, por exemplo, todo mundo ouve rádio, todo mundo pode ficar sabendo o que é um provérbio. Quanto a mim, sou pelo movimento, porque permite preservar as coisas essenciais e desprezar as supérfluas.
Eu também defendo muito as mulheres em meus filmes. Elas têm uma presença forte na sociedade africana.
Folha - Mas são oprimidas também. Cultiva-se ainda a poligamia em seu país?
Ouédraogo - Sim, muito. Está diminuindo, mas há poligamia em toda parte, embora não seja formalizada. Na França, também, vejo muita gente que tem amantes.
Folha - Uma mulher burkinesa poderia ter três maridos?
Ouédraogo - As coisas não são bem assim. Conheci mulheres casadas que tiveram filhos com homens estrangeiros que depois partiram de volta para seu país, e quando o marido ficou sabendo, aceitou ficar tanto com a mulher quanto com seus filhos. A criança se torna mais importante do que a relação entre o casal. Portanto, mesmo que não se aceite em princípio, diante do fato consumado acaba-se aceitando, mesmo que não se diga publicamente, por orgulho ou o que seja. Os homens, na Europa, que têm amantes, em geral não contam para suas mulheres. São elas que descobrem. Ao passo que, na África, a poligamia permite ao homem ter duas ou três mulheres. Não digo que seja justo, mas é legalizado. É público e menos hipócrita.
Folha - Para os homens. Mas para as mulheres é horrível. Elas ficam sempre enciumadas, brigam entre si, nos filmes africanos vemos isso constantemente.
Ouédraogo - Sou contra essa idéia. É muito fácil dizer. Há, por exemplo, sociedades nas quais, quando a mulher se casa, leva a irmã junto, para que o homem mais tarde não tome uma segunda esposa. Há muitos outros detalhes que é preciso conhecer: a primeira mulher se torna a irmã mais velha das outras. Aquilo que se conhece como paixão ao fim de cinco ou dez anos acaba, trata-se simplesmente de viver e lutar juntos. Acho que as sociedades africanas compreenderam isso muito melhor, sem que ocorra divórcio a todo instante como na Europa, a cada vez que surge um novo desejo. Acredito que, se observarmos atentamente, há talvez coisas que são positivas na poligamia. Mas, diante da economia e do mundo moderno, é verdade, um homem moderno não pode aceitar isso. Os jovens nas cidades africanas, hoje em dia, não querem mais a poligamia, porque causa muitos problemas, é preciso pagar os estudos das crianças, são muitos encargos, é sobretudo a razão econômica que impede a poligamia hoje em dia.
Folha - Algo que aprecio em seus filmes é o fato de levarem a uma universalização de atitudes e questões morais que, em outros filmes africanos, parecem exclusivamente da África.
Ouédraogo - Nesses filmes em que eu estava lidando com meu próprio meio, não houve problemas. Mas nesse gênero de filmes nos quais se é extraído de seu próprio meio e se entra então na competitividade geral, tentei dizer, como Soyinka, "o tigre não perde sua tigritude". No passado, fizeram-nos perder tanto tempo justificando que mesmo sendo africanos éramos capazes de dominar técnicas, de realizar coisas, perdemos tanto tempo tentando demonstrar que tínhamos uma cultura, que afinal o essencial se perdeu. Fiz o filme "Le Cri du Coeur", e eles acabaram comigo. Não faz mal. Sou muito teimoso. Filmes como "Yaaba" ou "Tilai", eu te juro que poderia fazer mil iguais de olhos fechados, porque conheço aquele meio, vivi aquilo. Aqueles que fazem filmes ditos "autenticamente africanos" não são mais africanos do que eu. Para mim, o problema é outro. Se conseguirmos dizer que somos o que somos e assumirmos isso, então o cinema se torna fácil, porque ele também nos pertence. Não pertence apenas aos povos ocidentais.
Chegou muito tarde a nós, temos problemas de atores e de técnicos, mas a percepção dos seres e das coisas, da vida a nossa volta, pode ser completamente diferente de um africano para outro. Não é portanto uma questão da África, é um ato de criação. Mas, como somos complexados e temos medo, e como há o Festival Pan-Africano de Cinema que nos fez crescer, todo mundo fica na mesma temática, ninguém se mexe.
Se você tentar se mexer, os outros vêm te cortar as asas para que você volte. Com isso, o cinema da África não vai sair do lugar, porque não tem audácia. Se você tenta ser audacioso, quer dizer que você é diferente, não é mais africano.
Folha - Há muitos críticos africanos que reprovam as cenas de nudez e de sexo no cinema africano, sob a alegação de que isso "não faz parte da tradição".
Ouédraogo - Então a gente não faz amor? Fazer cinema é reproduzir o que acontece de verdade. Em "Kini et Adams", há uma cena de sexo. A atriz, que é camaronesa, me disse que nunca tinha feito amor no cinema e estava com vontade de fazer. Eu lhe disse: "Se você está com vontade, eu também nunca filmei um ato de amor, então vamos fazer". A nudez não tem nada de abominável.
Essa atriz me disse que tinha um belo corpo, e tinha razão. Mas as pessoas se recusam a dizer que isso faz parte de nosso cotidiano. No entanto, há tanta gente vendo cinema pornográfico, por meio dos satélites, e mesmo no mercado é o que dá mais dinheiro, e as pessoas vão ver isso. Mas não admitem o mesmo num filme africano.

A íntegra da entrevista acima será publicada na revista "Imagens", nº 8, da Editora da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a sair no final deste mês. Informações: 019/788-2173 (fax) e 019/788-2169 (fone).

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