São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997
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A retórica seca de um poeta fluvial

HAROLDO DE CAMPOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

O grande "encoberto" da poesia argentina contemporânea é J.L. (Juanele) Ortiz, poeta nascido na província de Entre Rios, no interior do país, em 1896, cerca de um ano antes da publicação, na revista internacional "Cosmopolis", do poema-constelar de Mallarmé, "Un Coup de Dés" ("Um Lance de Dados"), esboço ou primeira etapa do Livro ideal, duplo do Universo, que o poeta francês nunca chegou a levar a cabo (1).
Ortiz também, durante sua vida de poeta, voltou-se para a realização de uma obra-suma -um Livro escoadouro, foz de livros-afluentes-, que foi germinando e proliferando, quase sem ressonância pública (a não ser junto a um pequeno círculo de amigos), desde 1933, data de sua primeira coletânea, "El Agua y la Noche", da qual, além de autor, foi planejador gráfico e editor. Até 1958, já eram 13 os volumes dados à luz, sempre a expensas do poeta. Finalmente, em 1968, uma casa editora de Rosário (Ediciones Vigil) publica, em três tomos, toda a obra ortiziana, sob o título geral "En el Aura del Sauce" (Na Brisa do Salgueiro), tendo como organizador o poeta e crítico Hugo Gola. No ano passado, com introdução e notas de Sergio Delgado e textos críticos de Juan Sauer, Hugo Gola, Martin Prieto, D.G. Helder, Marilyn Cotardi e Maria Tereza Gramuglio, a Universidad Nacional del Litoral lançou a "Obra Completa" de Juanele, contendo seu livro-matriz, precedido de um "Protosauce" (constituído de poemas esparsos), além de prosas e de poemas avulsos que poderiam ter-se integrado num "Quarto Tomo" da "obra em progresso" ortiziana (2).
O que caracteriza a empresa de Ortiz é um tipo estranho, inusitado, de retórica. Uma retórica "seca", "opaca" ("Mi voz es opaca y sin brillo") (3), aventuro-me a dizer, por oposição à retórica "sumosa", resplendente e ressonante, de sucessivos sedimentos metafóricos, dispositivo nerudiano que acabou profundamente arraigado na dicção poética hispano-americana.
O discurso de Ortiz é "ressecado", "fosco", beira a prosa. Não exclui, mas inclui os recursos, aparentemente áridos, de modulação sintático-prosódica, os conectivos e disjuntivos, os índices de pausa e relutância, as reticências, os versativos e os adversativos, os advérbios (especialmente os em "-mente"). Interpontua-se de vírgulas e outros sinais ortográficos, abusa deles, arborescendo, por disjunção de ramagens, no branco da página.
Essa "arbolatura" (expressão de Sergio Delgado) frásica, que começa a se salientar a partir da última fase do poeta, não é, porém, construída segundo um mecanismo regulador interno, um dispositivo de mensuração, como o "eixo-médio", utilizado para a captação partitural do fôlego, por outro poeta "arborescente", o alemão Arno Holz (1863-1929), autor do "Phantasus". O poema-livro monumental de Holz, contemporâneo de Mallarmé, começou com a publicação de dois fascículos (1898-1899); foi-se agigantando, assumindo a forma de um "Opus-Atlas", na edição de 1916, de Leipzig; alcançou, acrescido, uma nova impressão nas "Werke", 1924-25, vols. 7 a 9, para, finalmente, em 1961-62, culminar recolhido nos três primeiros volumes da edição póstuma das obras do poeta, organizada por W. Emrich em conjunto com a viúva do autor, a (mera coincidência) argentina Anita Holz.
Não estou aqui propondo um paralelo. Nada mais distante do mundo "entrerriano" de Ortiz, nada mais diferente dele do que o cosmorama cintilante, versicolor, de frondosas palavras, aglutinadas em compósitos extremados até a exaustão, do "Phantasus" (cuja rigorosa "álgebra textual", cujo calculado e meticuloso dispositivo de engendramento foi estudado por Max Bense). A linguagem de Holz, entre impressionismo e expressionismo, é, ao fim e ao cabo, "abarrocada", já no sentido tardio (e irônico) de um amaneiramento ao mesmo tempo rococó e Jungend-Stil. O traço único que aproxima os dois poetas é um gesto tipográfico aparentado, que tende à frase arborescente no arejamento da página aberta (no caso de Holz, respondendo a uma precisa teoria do ritmo oral; no de Ortiz, menos radical sob esse aspecto, correspondendo a uma biodinâmica espontânea, a uma respiração vital).
Em ambos os poemas, o "horror vacui" do Livro hiante jamais se sacia, mesmo diante do assédio incessante e pervasio dos galhos e esgalhos de uma sintagmática proliferante. A frasística ortiziana, porém, à diferença daquela de Arno Holz, não tende à harmonização numa figura de base, silhueta de conífera, reconhecível nas variantes, a coluna axial sustentando, mais expandidas ou menos, as linhas-vértebras da composição. O "escreviver" (expressão do poeta brasileiro J.L. Grünewald), característico de Juanele, na etapa final do seu ambicionado "Livro", se deixa esgarçar como ramagens e ramúsculos agitados pelo vento. Abandona-se a enlaces e desenlaces no receptáculo da página. Propõe um ritmo livre, pneumático (uma respiração: "el hálito, gris y blanco, del mar"), uma ventilação e uma casualística (uma casuística versicular) ad libitum, próxima, no plano visual, à "action painting", à pintura gestual, mais orgânica do que geométrica (a não ser que se pense numa fluida e voluntariosa topologia).
Viajante interior, com raras desubicações efetivas de seu marco terrenho de origem, Ortiz empreendeu uma única viagem ao exterior. Em final de setembro de 1957, e por dois meses, visitou, em comitiva solidária de convidados especiais, a China Popular, a URSS e outros países socialistas. Jornada memorável. Memorável no sentido memorial, dos "traços mnêmicos" que o País do Meio, cortado de grandes rios, deixou na escritura do poeta entrerriano, infletindo, em curso próprio, no aflúvio seminal do Livro-Rio que Juanele pacientemente urdia. Poema-rio, diga-se de passagem, é também aquele de hausto longo, escrito em 1953 por nosso João Cabral de Melo Neto ("O Rio" ou "Relação da Viagem Que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à Cidade do Recife"). Poema de cantaria prosística, ao influxo de Berceo ("Quiero que compongamos yo y tú una prosa"), só que não em fluência irregular, esgalhada, dispersiva, como no caso de Juanele, mas sim contido num álveo severo, em metro e rimário ascéticos.
Voltemos, porém, à vertente chinesa, recolhida na primeira parte de "El Junco y la Corriente" e estampada às págs. 553-575 da "Obra Completa", qual afluente do "Livro" "riocorrente" ("riverrun") ortiziano. A viagem à China parece ter atualizado, em geografia real e contatos pessoais, um antigo interesse de Juanele pela cultura chinesa, seja pela poesia clássica, seja pela escrita ideogrâmica (4). Mas o alaúde sínico ortiziano não vibra nas pautas regulares do conciso verso chinês, composto de caracteres monossilábicos, organizados segundo uma complexa trama tonal. Nem busca imitá-lo com os recursos de um idioma ocidental. Antes, à elocução de Juanele apraz um desgarre e uma dissonância que só tem de chinesmente congenial a quase-impessoalidade caracterizada por uma retórica hialina, do tipo "cristal evasivo" (5). Seu parentesco oriental mais nítido é com a caligrafia "desmanchada", de estilo "delirante", como, por exemplo, a do poeta-pintor Cheng Hsien (1683-1765), bizarro e independente, que se autodenominava "feng tzu" (o tresloucado).
Nesse estilo caligráfico, a mão do poeta-pintor (e Ortiz, de fato, o era) desfigura o desenho ortogonal dos ideogramas sigilares, confinados em quadrículos, como se o pincel de bambu estivesse possuído por uma lufada de vento, por uma estética de rajadas. Nos poemas chineses de Juanele aparecem algumas palavras na língua do país (reminiscências, anotadas ou memorizadas, das explicações do guia-intérprete da comitiva?). A grafia, porém, é caprichosa, a começar pela do "Rio Longo" ("Yangtze" ou "Yang-Tsé", que o poeta entrerriano escreve "Yan-Tsé"). Como, à diferença de Pound, Ortiz não interpola os ideogramas respectivos, fica difícil identificá-las.
"Kuan", por exemplo, pode sugerir desde o sobrenome de um herói, canonizado como deus da guerra, quando pronunciado na primeira tonalidade, até uma ave, a garça, quando dito na quarta tonalidade, entre outros vários significados possíveis; "yin", conforme a tonalidade, corresponderá a "princípio feminino", ao metal "prata", aos verbos "imprimir" e "beber", entre outras acepções. Assim, no sétimo verso de "Quando digo China...", com a indicação "Sangai" (em vez do topônimo correto, Shangai, em ortografia portuguesa Xangai), a expressão "um porvenir como de Kuan-yins..." quererá dizer o quê? "Um porvir como de garças prateadas", como o "s", marca do plural, acrescentado por Juanele ao sintagma invariável chinês? Melhor não excogitar por muito tempo: a função desses "calques" chineses no verso ortiziano parece-me, antes de tudo, mágica, mântrica, de virtual talismã fônico, mesmo quando se trate do monossílabo "tao", enigmaticamente associado com a imagem de um "vôo em cruz" pelo poeta entrerriano (6).
Outro poema da série chinesa, que me parece interessante considerar, é exatamente o intitulado "A Grande Ponte do Yang-Tsé", reportando-se à visita feita pelo poeta a essa obra de engenharia (uma rodoferrovia, toda de aço, de 1.670 metros de extensão, construída na década de 50), no dia 27 de outubro de 57. A ponte liga o norte ao sul do país. Acontece que o topos da "Torre (ou Pavilhão) do Grou Amarelo", vinculado à paisagem do "Rio Longo", tem uma extensa tradição na poesia chinesa, desde os clássicos da dinastia T'ang (Ts'ui Hao e Li Po), passando por Wei Ku'en (1646-1705), até o "chairman" Mao Tse-tung, mais conhecido como guerrilheiro vitorioso, e depois onipotente chefe de Estado, do que como poeta e calígrafo.
Mao escreveu seu poema em 1927, após visitar o sítio histórico (a Torre, a cavaleiro do Rio Longo, de onde, segundo a tradição, um ancião subira aos céus montando um grou amarelo, para nunca mais retornar à terra) (7). Ortiz, no início da segunda estrofe de seu poema sobre "a grande ponte", fala em "Casa de la garza amarilla", designação aproximativa, como se percebe, do pavilhão torreado que, em chinês, se diz "Huag Ho Lou", título, aliás, da composição de Mao que tematiza o "locus classicus". Não me parece plausível que Juanele, durante sua estada na China, tenha tido oportunidade de conhecer, em tradução, o texto de Mao, já que, como se sabe, só em janeiro de 1957 o líder chinês permitiu a publicação em revista de um conjunto de poemas de sua lavra. Embora a visita de Ortiz tivesse ocorrido em outubro do mesmo ano (o que não tornaria de todo impossível a suposição), nada indica que isso tenha ocorrido e as "Notas" à série chinesa são omissas a respeito.
No entanto, há alguns pontos de cruzamento de referência, seja o acima apontado, seja a ocorrência, nos poemas de ambos os autores, de alusões às colinas denominadas Serpente (em cujo topo se ergue a Torre) e Tartaruga (na outra margem do Yang-Tsé, fronteira à anterior). Essas colinas, no poema de Mao, são comparadas a ferrolhos que protegem o curso do rio (Ortiz alude à "primeira grande harmonia/ Colina da Tartaruga até a Colina da Serpente"). Segundo o tradutor e estudioso Wang Hui-Ming, a referência, no quarto verso da oitava de Mao, à "Torre do Grou Amarelo" poderia ser uma alusão aos antigos heróis que, segundo o clássico "Romancedos Três Reinos", ambientado no século 3º de nossa era, se haviam reunido, sem sucesso, no local, buscando um acordo de paz. O tema heróico também não falta ao poema de Juanele. Depois de invocar os personagens associados à "Casa da garça amarela" e os grandes poetas da dinastia T'ang, Tu-Fu e Li Po: "Qué dirían de él los de la 'Casa de la garza amarilla' (...) Qué dirían de él Tou Fou y Li-Tai-Po?", Ortiz remata a série de frases paralelísticas em refrão com: "Y qué dirían, ellos, de suas héroes?" (Os heróis, no caso, seriam aqueles que haviam vencido o "Rio Longo", construindo a ponte unificadora dos extremos do país; não consegui identificar a referência a Li-Pin, na terceira estrofe, mas a alusão parece encaixar-se na nômina de heróis).
Há, ainda, no poema ortiziano, um aceno enigmático a "torvelinho" ("se abrazaran sobre el 'torbellino' "), enquanto no poema de Mao ocorre a imagem das águas turbilhonantes (Mao recorre a uma palavra-duplicada, "t'ao t'ao", para expressar essa torrente agitada), por sua vez comparadas à maré-montante que lhe empolga o coração ("Maré do coração, tão alta quanto as ondas", em minha tradução) (8). Mas o paralelo não vai mais longe. Embora o poema de Juanele insinue o motivo utópico da solidariedade e da fraternidade universais (utopia que, na poesia ortiziana, "às vezes parece coincidir com o socialismo, mas que, no geral, se apresenta de um modo abstrato, difuso, cósmico") (9), o dispositivo retórico de que se serve o poeta tudo dissolve num rocio de frases reticentes, truncadas, que se organizam (ou des-organizam) como pespontos -como toques de pincel- sobre um vazio de pintura taoísta. Uma semelhante errância semântica, indecidível, também a julgo encontrar (engendrada, é verdade, por diferente prática escritural) em certos poemas "orientalizados" de Lezama, como, por exemplo, "A Prova do Jade", que traduzi para o português em meu estudo de 1971 "Uma Arquitextura do Barroco" (10).
Essa "dificuldade de estar de todo" (cito de memória uma expressão de Cortázar) da sintaxe ortiziana, essa vocação de interlúdio e suspense, esse obsessivo pespontar na página de frases-disjuntas que se descontinuam em outras frases de raízes aéreas (processo que se marca justamente a partir de "El Junco y la Corriente" e vai ganhando fôlego diagramático na tipografia ortiziana em "El Galeguay", "La Orilla Que Se Abisma"... e nos inéditos que constituiriam o "Quarto Tomo", a partir do poema "Vi una flores...") (11); esse processo, que opera mais por expansão e desmembramento do que por eversão e ruptura (neste último sentido, Ortiz jamais alcança a radicalidade do Vallejo de "Trilce", por exemplo), parece perseguir um, quiçá, ponto vélico, onde todas as tensões se conciliassem numa totalidade compaginada de "Livro Último", sempre di-ferido porque jamais concluível no biorritmo finito da vida humana.
"Vita d'un Uomo" chamou Ungaretti à sua poesia completa. Ungaretti, um poeta muito diverso -é certo-, quanto ao timbre estilístico, desértico e barroquizante ao mesmo tempo; um poeta que quase só teria em comum com Ortiz a fama de "hermético"; mas que é lembrado, com razão, por Hugo Gola, em conexão com o tema "existência" e "poesia", um tema que um Juanele se expressaria através de uma "serenidade crispada" (12). Pois bem, "Vocação de Entrerrios" poderia ser, segundo penso, a rubrica definidora da prática poética ortiziana, alongada e delongada ao sabor de uma vida-tempo de mais de quatro décadas. Uma práxis continuada, diuturna, dessa retórica "opaca" -paradoxalmente "seca"- que rege um mundo poético "fluvial", é certo, porém de águas morosas: "profusas, imóveis, indolentes", freadas pela interferência de "ilhas aluviais" (como a descreve o poeta J.J. Saer) (13). Assim, Juanele Ortiz, poeta mesopotâmico, vem, cada vez mais, projetando seu perfil achinesado, seu talhe de junco ribeirinho aclimatado na solidão entrerriana, sobre a poesia de seu país (e requerendo, também, seu passaporte para o mundo, para a "Weltliteratur").

Notas:
1. "O 'Coup de Dés' é um poema ou, se se preferir, um livro; ele, por certas ambições, já é mesmo uma amostra do 'Livro' ", Jacques Scherer, "Le LIVRE de Mallarmé", Gallimard, 1957. Ver, a propósito, o ensaio de 1963 que abre e intitula meu livro "A Arte no Horizonte do Provável" (Perspectiva, 1969; várias reedições), onde enfoco esse caráter de "esboço" do "Lance de Dados" em relação ao "Livro" (ou "Obra Total") sonhado pelo mestre de "Igitur";
2. Tomei conhecimento da obra ortiziana por meio do poeta argentino Jorge Quiroga, então residente em São Paulo. Para o fim de escrever um estudo sobre as "Galáxias", Quiroga entrevistou-me em minha casa, ocasião em que me mostrou, com entusiasmo, o seu exemplar da edição rosariana de 68 ("En el Aura del Sauce"). Após esse vislumbre, ainda que rápido e superficial, da inusitada poesia ortiziana, despertou-se-me o interesse pelo poeta de Entre Rios, de quem só de raro em raro pude subsequentemente ler algum poema, até que me chegasse às mãos, por intermédio do poeta Daniel García Helder, editor do conceituado periódico "Diário de Poesía", e graças à cortesia de Sergio Delgado, o alentado volume da "Obra Completa" (1.121 págs. mais o índice), na edição da Universidad del Litoral. O "Diário de Poesía" é, aliás, uma das publicações mais empenhadas na divulgação de Juanele;
3. Palavras de León Felipe ("Minha voz é opaca e sem brilho e vale pouco para reforçar um coro. Não obstante, serve-me muito bem para que eu reze, a sós, debaixo do céu azul"), tomadas como epígrafe por Juanele em seu primeiro livro (1933). Cf. Hugo Gola, "El Reino de la Poesía", ensaio na edição de 1996 da "Obra Completa";
4. Veja-se o tópico "Lua de Pequim" da introdução à obra de J.L. Ortiz, assinada por Sergio Delgado (ed. cit.);
5. No original, "cristal fugitivo". Expressão contida num dístico de Ortiz ("Triste, triste de no poder vestir para alguien/ los cristales fugitivos y las sedas frágiles del tiempo"), citado por S. Delgado (loc. cit.);
6. Etimologicamente, o ideograma "tao", escrito com 12 traços de pincel, equivale a "caminho" (em japonês, "dô", "tô", é o segundo dos dois "kanji" constitutivos da palavra "shinto", designativo do xintoísmo, religião tradicional do país; o primeiro ideograma do compósito significa "divindade", "espírito"). Grafa-se com o pictograma de "pe" ou "pegada" (uma "bota" estilizada), representando "movimento", no qual está inscrito o de "cabeça" ("caput", a parte eminente do corpo, e ainda "chefe"), indicando "principalidade", algo como "estrada-real"; este segundo pictógrafo é metonímico, reproduz um "olho" encimado por uma saliente "sobrancelha", pondo em foco a zona da face e da visão). É um conceito-chave tanto do taoísmo como do confucionismo. Pound o interpreta como "o processo", num sentido ético-pragmático, reconhecendo nele "um pé que transporta a cabeça ou a cabeça conduzindo os pés, um movimento ordenado, guiado pela inteligência" (Confucius, "The Unwobbling Pilot/The Great Digest", 1952). H. Kenner ("The Pound Era", 1971) argumenta que Pound, involuntariamente, como outros tradutores, serviu-se do texto confuciano editado pelo filósofo heterodoxo Chu Hsi (a.d. 1130-1200), coevo do trovador provençal Arnaut Daniel. Promotor do neoconfucionismo, Chu Hsi teria infiltrado de um taoísmo de vertente metafísica ou mística (transcendentalista) o conceito confuciano, de matiz eminentemente pragmático-político, extraído dos "Anacletos".
Quanto ao taoísmo, nele podem ser reconhecidas, segundo Etienne, duas tendências, uma de caráter mágico e xamânico, com tônica espiritualista e anelo de vida imortal; outra, que corresponderia mais fielmente ao pensamento de Lao Tsê ("O Velho Mestre"), de cunho ultra-rousseauniano, envolvendo uma política e uma ética, algo como uma inatividade-ativa, uma fraqueza-forte (uma luta marcial como o judô ou a técnica de guerrilhas dos vietnamitas contra o invasor americano seriam exemplos desse taoísmo assimilável como norma de conduta).
Confúcio, que para alguns seria contemporâneos e mais moço, para outros precederia de alguns séculos o pensador do "Tao Te King", teria, segundo os primeiros, se pronunciado sobre o "Velho", comparando-o a um "dragão", por sua inaferrabilidade, ou seja, pelo caráter evasivo de suas palavras. Do ponto de vista histórico-cronológico, a datação correta parece ser a dos segundos. Nesse contexto, a visão de Ortiz parece ter sido modulada pela versão "mística" ou "mágica" dos ensinamentos do enigmático sábio chinês. Daí -quem sabe?- a associação entre o "tao" e a imagem da "cruz" alada, do poema sobre o Yang-Tsé.
7. Ver meu artigo "A Torre do Grou Amarelo - De Li Po a Mao Tse-tung", no Mais! desta Folha, no qual estampei minha "transcriação" do poema do líder chinês (20/6/97);
8. Ou: "Maré do coração, tão alta 'como' as ondas" (HSIN CH'AO CHU LANK KAO/ coração maré ir avante/ exsurgir onda alta);
9. Daniel García Helder, no trecho conclusivo de seu belo ensaio "Juan L. Ortiz - Um Léxico, Um Sistema, Uma Chave" (ed. cit.);
10. Em "A Operação do Texto", Perspectiva, 1976. Reedição em preparo;
11. No nº 33, outono de 1995, do importante tablóide trimestral argentino "Diario de Poesía", publica-se (republica-se) um significativo depoimento de Juanele, de 1945, sobre as relações de sua poesia com a região natal do poeta, sob o título "El Otoño en Paraná", acompanhado de um poema da última fase (1970 ou 1971), "No puedo abandonar otoño...". Esse fascinante poema está recolhido agora na "Obra Completa", seção "Poesia Inédita" (págs. 946-952);
12. Hugo Gola, "El Reino de la Poesía" (ed. cit.);
13. J.J. Saer, "Sobre J.L. Ortiz", no número especial (nº 18, 1955) da excelente revista "Poesía y Poética", dirigida por Hugo Gola e publicada trimestralmente pela Universidad Iberoamericana (México).

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