São Paulo, domingo, 14 de setembro de 1997
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Conde Libri, o ladrão de obras

ALBERTO MANGUEL

Gugliemo Bruto Ieilio Timoleone, conde Libri-Carucci della Somaia, nasceu em Florença, em 1803, numa antiga e nobre família toscana. Estudou direito e matemática e tornou-se tão bem-sucedido nessa última matéria que, quando tinha 20 anos, ofereceram-lhe a cadeira de matemática na Universidade de Pisa. Em 1830, supostamente sob ameaças da organização nacionalista dos carbonários, emigrou para Paris e, pouco depois, tornou-se cidadão francês. Com seu nome retumbante reduzido então para conde Libri, foi recebido pelos acadêmicos franceses, eleito membro do Instituto da França, indicado como professor de ciências na Universidade de Paris e distinguido com a Legião de Honra por suas credenciais eruditas e intelectuais.
Mas Libri tinha outros interesses além da ciência: desenvolvera uma paixão por livros: em 1840, já possuía uma coleção notável e comerciava com manuscritos e livros raros impressos. Duas vezes tentou sem sucesso obter um cargo na Biblioteca Real. Então, em 1841, foi nomeado secretário de uma comissão encarregada de supervisionar oficialmente o "catálogo geral e detalhado de todos os manuscritos, em idiomas antigos e modernos, existentes hoje em todas as bibliotecas públicas departamentais".
Sir Frederic Madden, curador do Departamento de Manuscritos do Museu Britânico, descreveu assim seu primeiro encontro com Libri, a 6 de maio de 1846, em Paris: "Pela aparência externa, (ele) parecia jamais ter usado água, sabão ou escova. A sala na qual fomos introduzidos não tinha mais de cinco metros de largura, mas estava repleta de manuscritos em prateleiras que subiam até o teto. As janelas tinham vidraças duplas e um fogo de carvão e coque queimava na lareira, cujo calor, acrescentado ao cheiro das pilhas de pergaminhos em volta, era tão insuportável que me deixou ofegante. O sr. Libri percebeu o incômodo que sofríamos e abriu uma das janelas, mas dava para perceber que um sopro de ar lhe era desagradável, e seus ouvidos estavam cheios de algodão, como para protegê-los dele! O sr. Libri é uma pessoa um tanto corpulenta, de feições bem-humoradas mas largas". O que sir Frederic não sabia -na época- é que o conde Libri era um dos mais rematados ladrões de livros de todos os tempos.
De acordo com o mexeriqueiro do século 17 Tallemant des Réaux, roubar livros não é um crime, exceto se os livros forem vendidos. O prazer de segurar um volume raro nas mãos, de virar as páginas que ninguém virará sem nossa permissão, com certeza movia Libri até certo ponto. Se foi a visão de tantos livros lindos que inesperadamente tentou o culto bibliófilo, ou se foi antes o desejo incontrolável por livros que o levou a almejar o cargo, jamais saberemos.
Armado das credenciais oficiais, vestindo uma enorme capa sob a qual escondia seus tesouros, Libri ganhou acesso a bibliotecas de toda a França, onde seu conhecimento especializado lhe permitia descobrir e colher as maravilhas escondidas. Em Carpentras, Dijon, Grenoble, Lyon, Montpellier, Orléans, Poitiers e Tours não somente roubou volumes inteiros, como cortou páginas que depois exibiu e, às vezes, vendeu. Somente em Auxerre não concretizou a pilhagem. O obsequioso bibliotecário, ansioso por agradar o funcionário cujos documentos anunciavam-no como Monsieur le Secrétaire e Monsieur l'Inspecteur Général, autorizou de bom grado que Libri trabalhasse à noite na biblioteca, mas insistiu em colocar um guarda ao seu lado para atender a qualquer necessidade do cavalheiro.
As primeiras acusações contra Libri datam de 1846, mas -talvez porque parecessem tão improváveis- foram ignoradas, e Libri continuou a atacar as bibliotecas. Começou também a organizar vendas importantes de alguns dos livros roubados, vendas para as quais preparava catálogos excelentes e detalhados. Por que esse bibliófilo apaixonado vendia os livros que roubara correndo tantos riscos? Talvez precisasse apenas de alguns poucos e preciosos, selecionados como as pérolas raras de seu butim. Talvez os tenha vendido por pura ganância -mas essa é uma suposição muito menos interessante. Quaisquer que fossem seus motivos, a venda de livros roubados não podia mais ser ignorada. As acusações acumularam-se e, um ano depois, o promotor público iniciou investigações discretas -que foram abafadas pelo presidente do Conselho Ministerial, o sr. Gnizot, amigo de Libri e testemunha de seu casamento. É provável que o assunto tivesse morrido se a Revolução de 1848, que acabou com a Monarquia de Julho e proclamou a Segunda República, não tivesse descoberto o dossiê de Libri escondido na escrivaninha de Grizot. Libri foi avisado e fugiu com a esposa para a Inglaterra, não sem levar consigo 18 caixas de livros avaliados em 25 mil francos. Na época, um trabalhador especializado ganhava cerca de quatro francos por dia.
Muitos políticos, artistas e escritores manifestaram-se (em vão) em defesa de Libri. Alguns haviam lucrado com suas maquinações e não queriam se comprometer no escândalo: outros tinham reconhecido nele um estudioso honrado e não queriam passar por bobos. O escritor Prosper Mérimée, em particular, foi um defensor ardente de Libri. O conde mostrara-lhe, no apartamento de um amigo, o famoso Pentateuco de Tours, um volume iluminado do século 7º; Mérimée, que viajara muito pela França e visitara inúmeras bibliotecas, observou que viu aquele Pentateuco em Tours. Libri mais que depressa explicou ao escritor que o que vira fora uma cópia francesa do original adquirido por ele na Itália. Mérimée acreditou: escrevendo a Edouard Delessert em 5 de junho de 1848, insistiu: "Para mim, que sempre disse que o amor por colecionar leva as pessoas ao crime, Libri é o mais honesto dos colecionadores, e não conheço ninguém, exceto Libri, que devolveria às bibliotecas os livros que outros roubaram". Por fim, dois anos depois que Libri foi julgado culpado, Mérimée publicou na "Revue des Deux Mondes" uma defesa tão ruidosa de seu amigo que o tribunal o convocou, acusando-o de desacato.
Sob o peso das provas, Libri foi condenado in absentia a dez anos de prisão e à perda de seus cargos públicos. Lorde Ashburnham, que comprara de Libri, por intermédio do livreiro Joseph Barrois, outro raro Pentateuco iluminado (este roubado da biblioteca pública de Lyon), aceitou as provas da culpa de Libri e devolveu o livro ao embaixador francês em Londres. O Pentateuco foi o único livro que lorde Ashburnham devolveu. "Porém, os cumprimentos que chegaram de todos os lados ao autor de ato tão liberal não o impeliram a repetir a experiência com outros manuscritos de sua biblioteca", comentou Léopold Delisle -que em 1888 organizou um catálogo do espólio de Libri.
Mas então Libri já virara havia muito tempo a página final de seu último livro roubado. Da Inglaterra foi para a Itália e instalou-se em Fiesole, onde morreu em 28 de setembro de 1869, não reabilitado e pobre. Contudo, no final, teve sua vingança contra os que o acusavam. No ano de sua morte, o matemático Michel Chasles, que fora eleito para ocupar a cadeira de Libri no Instituto, comprou uma incrível coleção de autógrafos que, não tinha dúvida, causariam inveja e lhe dariam fama. Ela incluía cartas de Júlio César, Pitágoras, Nero, Cleópatra e da esquiva Maria Madalena -todas falsas, revelou-se mais tarde: eram obra do famoso falsificador Vrain-Lucas, a quem Libri pedira que fizesse uma visita ao seu sucessor.

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