São Paulo, segunda-feira, 15 de setembro de 1997
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Catecismo

JOÃO SAYAD

Há coisas que não se deve perguntar. Assuntos proibidos que não devem ser mencionados, respostas que são dadas apenas por polidez. Só as crianças não percebem e continuam perguntando.
Lembro das minhas primeiras aulas de catecismo e o temor de que não tivesse tempo de confessar os pecados mortais. Seria condenado à danação eterna.
Perguntei ao meu pai se tinha algum pecado mortal. Ele respondeu, brincalhão, que usava o tempo da missa para fazer contas sobre seus negócios.
Fiquei muito preocupado. Meu pai estava literalmente brincando com fogo. Só mais tarde percebi a ingenuidade das perguntas e o bom humor do meu pai.
Não sei se realmente amadureci. Há coisas fadadas sobre o meu campo de especialidade para as quais continuo me sentindo um aluno de catecismo. Não consigo respostas convincentes.
Em reunião entre empresários e economistas do governo, ao se analisar as previsões de exportação e importação, todos comentaram que a situação não era boa nem podia ser boa. E que só seria boa quando o governo controlasse o déficit fiscal.
Ouvi em silêncio. Mas como será que o déficit fiscal afeta o balanço comercial? Como empresários, homens práticos e objetivos, imaginam que uma coisa se liga à outra? Como a diminuição de gastos do governo vai aumentar a rentabilidade das exportações e o custo das importações?
Um economista poderia se basear em algumas teorias. Talvez reduzindo o déficit fiscal, reduziria-se a demanda agregada e a demanda de importações. Mas não se pode dizer que o excesso de gastos de importação vem apenas do setor público. Pode vir também dos empréstimos do setor financeiro ao setor privado.
E o México? Como explicar a crise cambial de 1994 no México, que todo o setor financeiro afirmava que tinha feito a lição de casa e tinha superávit fiscal?
Além disso, não sei se é melhor cortar os gastos com as polícias militares do que cortar os gastos com compras de geladeiras. Como será que uma pessoa, pensando como gente, isso é, pensando livremente e não como economista, sociólogo ou arquiteto, poderia responder genuína e satisfatoriamente a essa pergunta: por que todo mundo diz, aqui no Brasil, que o déficit do balanço comercial só será resolvido quando for resolvido o déficit fiscal? O que que uma coisa tem a ver com a outra?
Não falei nada, com medo de ser inconveniente, de parecer mal-educado.
Como professor já perguntei para aluno de doutorado, defendendo tese, com a autoridade de membro da banca examinadora. "O senhor escreveu aqui que o déficit do balanço de pagamentos decorre do déficit fiscal. Gostaria que o senhor me explicasse como gente, por favor."
A resposta foi um editorial de imprensa. Reduzindo o déficit a economia seria mais competitiva (por quê?), mais eficiente (por quê?) e muitas outras coisas boas.
Entretanto, déficit não é tamanho do governo, o que poderia ser o ponto de vista dos liberais. Déficit é apenas gasto do governo não financiado por impostos. Pode existir um país com governo mínimo e imenso déficit.
O déficit pode ser financiado por moeda ou por dívida pública de cinco, dez ou 30 anos de prazo. Como o país seria mais eficiente se o montante de dívida pública de dez anos se reduzisse?
Talvez se imagine que a redução de impostos auxilia a exportação. Infelizmente também não é verdade. Se os impostos forem menores, ficaremos muito contentes. Mas a alegria será de exportadores e importadores igualmente e, portanto, não haverá alívio no balanço comercial.
Um amigo próximo confessou que gosta de algumas coisas que escrevo. Mas não admite o que escrevo sobre o déficit. Acha um absurdo.

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