São Paulo, quarta-feira, 17 de setembro de 1997
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O Senado e a majestade

ROBERTO ROMANO

Em textos publicados na Folha com os títulos de "Senadores, inimigos da pátria" (8/1/95) e "O Senado e o ressentimento nacional" (18/1/95), defendi a existência da Câmara Alta no Brasil. Surgiram críticas de intelectuais, militantes, políticos. Entre os opostos à permanência daquela instituição, o professor Renato Janine Ribeiro foi o mais explícito ("O Senado conservador", Folha, 13/1/95).
Minhas teses centravam-se na idéia de que "não é possível uma democracia federativa sem o fortalecimento das unidades políticas menores. A voz do Senado, portanto, é decisiva se quisermos manter e aprimorar uma Federação, se queremos evitar o caminho que hoje desgraça a Rússia, a ex-Iugoslávia e tantas outras Federações que traíram seu nome e suas promessas". Sem um país consolidado no plano federativo, "estaremos sempre à beira da fragmentação ou de seu 'remédio', os golpes para garantir o poder central".
Respondeu Renato Janine: o Senado "não é tanto, no mundo moderno, o guardião da autonomia dos Estados e regiões. Desponta, antes de mais nada, como órgão conservador". O defeito daquela Casa, definiu ele, é "mais estrutural (...), até porque, espantosamente, no Brasil a Câmara Alta tem mais poderes que a Baixa, deixando de ser revisora para ter quase o primado no Congresso". Mas, com o Senado ou propondo seu fim, urge abrir uma via institucional clara "para os poderes estaduais fazerem ouvir sua voz na política" (Janine). Uma república federativa deve garantir os Estados, definindo justiça nas trocas de poder entre eles nos planos econômico, político e jurídico.
Um Senado que não defenda as unidades federativas e não garanta a existência autônoma dos municípios é inútil. Infelizmente, isso ocorre com o Senado brasileiro. Como instância de madura deliberação, aquela Casa deve guardar o todo nacional, erguendo-se como suprema ordem do Poder Legislativo. Entre a Câmara dos Deputados e o Executivo, os senadores devem distinguir-se como fonte de respeito pela majestade da soberania popular.
O Senado, especialmente com as medidas da Comissão de Constituição e Justiça, pode se tornar uma agência de despachos do Planalto para fins eleitorais e legislativos. Espanta a conivência de senadores, servos do Executivo.
A mencionada comissão permite ao presidente amplo acesso à imprensa, em total desigualdade diante dos outros candidatos, dá-lhe a regalia de convocar cadeias de rádio e televisão no meio da campanha, fornece licença para o mesmo mandatário fazer propaganda sem análise da Justiça.
Além disso, os funcionários perdem estabilidade no período pré-eleitoral, medida à altura dos currais eleitoreiros. São muitas as iniquidades na lei indicada, piorando o projeto oriundo dos senhores deputados. A Folha, com descortino, batizou o instrumento normativo imoral como "Lei FHC" (12/9/97).
Não basta a subversão da própria autoridade ética e política. Um membro da Comissão de Constituição e Justiça afirmou não ser necessária "hipocrisia" no manejo da lei eleitoral. De magistrado a bedel de um outro poder: vergonha é o mínimo que o povo sofre diante desses "representantes". Revolta é o que aparece em todas as faces. Desprezo é o que merece quem diminui a soberania popular.
É triste comparar a prática de certos parlamentares com a teoria de Madison: o Senado "será, em todos os casos, um controle salutar sobre o governo. Ele duplica a segurança do povo ao exigir a concordância de dois corpos distintos em esquemas de usurpação ou perfídia, quando de outro modo a ambição e a corrupção de um seriam suficientes".
A comissão do Senado brasileiro inverte a doutrina. Ela não controla o Executivo: é seu instrumento. Basta ler o dito projeto substitutivo de lei eleitoral para captar a diferença entre a teoria de Madison, que ajudou os EUA a se tornarem potência hegemônica, e a miséria política patrícia.
Os pretensos paladinos da Federação calam-se diante dos piores ataques cometidos pelo Executivo contra os Estados e municípios. O FEF abre a porta da falência para os segundos, com as bênçãos dos senadores. Os primeiros, traídos por manobras como a "Lei" Kandir, enfrentam perdas estratégicas, dissolvendo-se num contexto no qual a saúde pública, a educação, os serviços básicos não podem mais ser mantidos.
A Câmara Alta está silente diante do ataque aos Estados e municípios brasileiros. Como pode defender o respeito pelas instâncias básicas de mando quem aliena sua própria majestade? O vocábulo significa, desde Roma antiga -onde o Senado era respeitável-, uma grandeza diante da qual nada é maior, nem César. A eminência e a majestade do povo inteiro devem se reunir num poder federativo responsável.
Mas, como diz Otto Gierke, "Federação" e "monarquia" se desencontram. É o que vivemos: mantida a subserviência do Legislativo, melhor será, para acabar com a "hipocrisia", como quer o senador acima referido, impor o regime monárquico no Brasil. Primeiro passo: abolir o Senado. Restará aos seus membros decorosos inclinar-se diante dos canhões, repetindo: "Saúdo vossa majestade!".

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