São Paulo, sexta-feira, 19 de setembro de 1997
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Molière demole as aparências em "Tartufo"

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

"Eu creio nas aparências", afirma Orgon, o protagonista de "Tartufo", comédia de Molière em nova e reveladora montagem de José Rubens Siqueira.
Em tempos de hipertrofia da mídia, da televisão em especial, nada mais indicado do que uma demolidora sátira das "aparências" -tema central do barroco, algo residual em Molière, revivido com vigor neste fim de milênio.
Políticos aparentam na televisão, personalidades aparentam, "magos" aparentam, com consciência, método, marketing; até o papa João Paulo 2º. E esta peça aponta a hipocrisia, a impostura da aparência, em particular aquela da fé, um embuste sustentado na moralidade da religião católica.
Orgon é o homem rico, burguês, que se deixa levar pelas aparências de Tartufo, um escroque que se faz passar por pio, sempre na igreja a rezar, mas de fato aproveitador, golpista, devasso. Cego pela devoção cristã de Tartufo, o "falso devoto" como o papel é descrito pelo próprio Molière, Orgon não ouve a mulher, os dois filhos, o cunhado, a empregada, ninguém.
O grande achado da montagem de José Rubens Siqueira é certamente a aproximação que consegue realizar entre o clássico francês de três séculos atrás e o Brasil de hoje, por meio do gosto comum pela comédia popular, derivada da "commedia dell'arte".
A tradução rimada, do próprio diretor, reporta ao cordel. A empregada "zanni", os jovens namorados, está tudo lá, acentuado na cenografia, figurinos, maquiagem. Mas são os atores que realmente garantem ser este "Tartufo" tão mais bem-sucedido do que o anterior do mesmo diretor, três anos atrás, em São Paulo.
Naquele havia uma reverência diante do clássico que este perde inteiramente, o que está claro na encenação, mas especialmente nos intérpretes. O senhor Leal, um "oficial de justiça" (Dárcio de Oliveira), e sobretudo o "isento" Comissário (Nando Bolognesi) são os exemplos mais flagrantes.
Com que liberdade, com que humor, com que desrespeito retratam os seus personagens. Lembram os melhores, geniais momentos de Ary França no "Doente Imaginário" do mesmo Molière, na entrada da década.
Não ficam atrás as duas atrizes que dividem Dorina, a empregada. Nana Pequini e Cláudia Missura parecem ter prazer elas mesmas nas estripulias inteligentes criadas por Molière. São atrevidas, irreverentes diante do poder, e são complexas, com nuances, por mais estereotipado o personagem.
O mesmo vale para Mariana (Fabiana Gugliemetti), a filha que Orgon quer casar com Tartufo, dividida entre a singeleza de uma quase Julieta e a histrionice de uma boneca de palhaço. Por outro lado, Orgon e Tartufo, e também Elmira, a mulher de Orgon, são novamente os personagens perdidos em cena, como há três anos.
Tartufo (Marat Descartes) ainda se revela mais, nem tanto nos diálogos, mas nas significativas expressões faciais, que lembram vilões do cinema mudo. Porém tanto ele quanto Orgon (Eugênio La Salvia), que incorporam a mensagem, por assim dizer, da peça, estão longe do humor exigido.
"Representam" seus papéis, sem a transcendência cômica autocrítica que eles exigem. Não riem de si mesmos. E Orgon, é bom lembrar, era feito no original pelo próprio Molière, descrito como comediante genial. Para ficar no tema de "Tartufo", situam-se ambos, sobretudo Orgon, na "aparência" dos personagens.
Também Elmira (Cristina Martinez e Paula Cohen), único papel cuja divisão em duas atrizes (a aparência e a verdade, talvez) não deu melhores resultados. O personagem jamais ganha forma definida, entre a esposa firme e consciente e a libidinosa, estranhamente retratada como uma espécie de Magda, do seriado de televisão.
E são os três os protagonistas de "Tartufo", o que dilui parte da apresentação. São os que deixam de "ver" ou "vêem", para além da aparência. Que dizem "não se pode julgar pelas aparências".
Mas não fazem perder o espetáculo, até pelo contrário. "Tartufo" nada fica a dever aos outros dois grandes espetáculos de Molière na temporada paulistana, "Um Burguês Ridículo" e "Don Juan", de temática sempre próxima. O comediógrafo francês tem muito a dizer, ao Brasil de hoje.

Peça: Tartufo, ou O Impostor
Quando: sáb., às 21h; dom., às 19h
Onde: Centro Cultural Elenko (r. Cardeal Arcoverde, 2.978, tel. 011/870-2153) Quanto: R$ 8 e R$ 4 (estudantes)

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