São Paulo, sexta-feira, 19 de setembro de 1997
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John Woo

DO "LIBÉRATION"

John Woo nos dá uma lição. No dia da entrevista, no café Costes, poucos homens deste cenário, em Paris ou Hollywood, são tão procurados, poderosos e têm a agenda tão ocupada como esse senhor.
E ele se apresenta totalmente cortês, solícito, causando uma impressão completamente inversa àquela "extrema" do seu cinema.
Esse cantonense, com aparência de beato "opus christi" mesclado com nouvelle vague, escuta e responde honestamente. Não fala mal de seu próximo -seu, digamos, plagiário defasado, Tarantino.
Tímido, da espécie em via de extinção dos "homens honestos", Woo, que não hesita em filmar com dez câmeras, confessa ter medo. Mais do que tocante, é um diferencial.
Sua simplicidade o protege. Woo é o guardião de um cinema-ópera "fake", indefensável, misto de ação e melodrama, cujo sucesso arrebatador, tanto de crítica como de público, se baseia em uma desproposição estética.
Cedo ou tarde, John Woo vai se livrar das turbulências frenéticas de "A Outra Face" ("Face/Off"), esse fenomenal amálgama de cinema e público, western-espaguete transformado em yakisoba, mistura de histeria mística ítalo-americana e violência fantástica.
O filme é uma mescla de coquetel de hiper-realismo e efeitos especiais; de Peckinpah, Leone e Melville. Tudo com pinceladas de tensão. Mistura de Franju e Lynch com incursões de kung fu, cenas nouvelle vague revisitadas, afogadas em paranóias cocainômanas.
Quando a calmaria voltar, e Woo se reencontrar onde sempre esteve, em algum lugar do Terceiro Mundo do cinema popular, entre Jean-Claude Van Damme e os filmes hindus, então se poderá vê-lo sem mal-entendidos, sem complexos, verdadeiramente. Uma alma de criança. Sua lição de honestidade é a imaturidade.
*
Pergunta - A cena da igreja é o momento surpreendente de "A Outra Face"...
John Woo - Nada de excepcional. Sou católico. Sofri profundamente a influência da "Bíblia", da liturgia. A igreja representa muito para mim. Adoro as igrejas.
Quando pequeno, conheci a miséria. Morávamos em um bairro podre, cheio de gângsteres, traficantes, drogados e prostitutas. Sempre se esperava pelo pior, e sempre acontecia.
Assisti a uma infinidade de assassinatos e cenas de violência, cresci em uma situação de insegurança enorme. Constantemente era assediado pelas gangs, que queriam me aliciar a qualquer custo. Era preciso resistir o tempo todo. Tive de brigar para sobreviver.
Por felicidade, tinha pais formidáveis. E a igreja. Juntos, os dois me mostraram o bom caminho. Aprendi com eles a viver com dignidade. De uma tal forma que, mesmo quando me desesperava, quando apanhava ou me sentia perdido, entrava em uma igreja.
Ali não tenho mais medo, estou seguro, cheio de harmonia e esperança. É uma parte do paraíso. Vivendo no inferno, eu tinha necessidade de um lugar assim, sem ódio, onde as pessoas eram boas, se interessavam umas pelas outras, não desperdiçavam suas vidas.
Pergunta - Você foi monge...
Woo - Eu havia decidido que queria ser padre. Sempre fui atraído pelo mundo religioso. E criança, quando minha família se tornou tão miserável que não podia mais pagar meus estudos, por volta dos 9 anos, uma família americana deu dinheiro à igreja para que pagasse a escola para mim.
Isso durou seis anos, e só assim pude me formar. Durante todo esse tempo, tive uma verdadeira veneração pelos padres e por todos aqueles que consagram suas vidas a ajudar. E, como reconhecimento, eu queria pagar minha dívida ajudando também.
Mas então o mosteiro não quis mais saber de mim. Os missionários achavam que eu era muito "artista", muito apaixonado por música, dança, cinema e teatro, e que assim não iria me concentrar na teologia.
Aconselharam-me então a seguir outro caminho. De qualquer forma, havia lá dentro alguma coisa que não me agradava. Em Hong Kong, a religião se mistura com a política. É ainda um teatro de lutas e conflitos. Tudo isso fez com que eu escolhesse as artes e guardasse a igreja comigo.
Pergunta - Dualidade?
Woo - "A Outra Face" parte da idéia de que a humanidade tem duas vertentes: o bem e o mal. Sempre em luta, cara a cara, como no espelho. Para mim, todos são iguais. Os maus têm seu lado bom.
Eu também tenho minha crueldade. Eis porque criei dois inimigos mortais que, no fundo, são parecidos entre si.
Pergunta - A mulher do filme é atroz, e os homens, sedutores. O próprio tema de "A Outra Face" é a inversão, a interpenetração. Seu cinema é homossexual?
Woo - Honestamente, eu nunca pensei nisso. Mas existem duas coisas. Desde criança, na escola, no cinema e para filmar, sempre tive ajuda de amigos, precisei de amizades.
Em troca, ajudei meus amigos a encontrar trabalho. E, nas vezes que estive duro, eles sempre me salvaram. Tsui-Hark, por exemplo, foi quem me ajudou a rodar meu primeiro filme importante; isso mudou minha vida.
O meu modo de sentir, de ver, está ligado a essas relações caritativas, a esse sentimento tão forte de reconhecimento e amizade.
Isso explica meu modo enfático de mostrar as relações humanas, esse toque de paixão que evoca a homossexualidade, um modo de filmar as pessoas como se estivessem na cama.
Pergunta - Van Damme...
Woo - Eu não acredito que venha a trabalhar novamente com ele. Ele é tão enquadrado, tão cartesiano. Ele deveria se renovar, provar a si mesmo que é um ator. Tenho dificuldade em lhe encontrar um verdadeiro personagem.
A verdade é que estou sempre próximo dos meus atores, a gente sai junto, se visita, sai de férias. Meus atores representam a eles próprios e a mim também.
Tudo o que eles fazem, sentem, os estados de espírito de (John) Travolta, agente do FBI, mas homem malvado no lar, tudo me diz respeito.
Van Damme é impecável sob o ponto de vista operacional, mas no plano sentimental não consigo me projetar nele. É uma estrela. Travolta e Nick (Nicolas Cage) também, mas eles são...reais.
Pergunta - Você satura a tela: pavor do vazio?
Woo - Não tenho medo do vazio, do tempo morto. Tenho até desejo de pausas, mas ao mesmo tempo gosto que sejam...ricas.
Como na música clássica. A música cresce, se amplifica, não há vazios. A atenção é mantida, até o ponto culminante.
Se quero que meu público se interesse por meus personagens, devo cativá-los. Não pode haver tempo para que ele se disperse. Ele deve ser sacudido a todo instante, sem escapatória. Com a respiração presa, sempre mais, mais, mais...

Tradução Luiz Antonio Del Tedesco

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