São Paulo, domingo, 21 de setembro de 1997
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Celso de Mello leva polêmica ao Supremo

ELIANE CANTANHÊDE
DIRETORA DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

O presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), José Celso de Mello, 51, está rompendo uma velha tradição da mais alta Corte do país. Assume posições que irritam os demais ministros e deixariam perplexos seus antecessores considerados mais progressistas.
Ele tomou posse em 22 de maio deste ano. Nestes quatro meses, já defendeu a ampliação do aborto legal, a união civil entre homossexuais, a nomeação de mulheres para o Supremo, a intervenção federal nos Estados onde há greves de PMs e a possibilidade de impeachment de magistrados.
Aposentadoria
A última de Mello foi condenar a aposentadoria integral para os magistrados. Recriminado pelos interessados em geral e pelos ministros do STF em particular, ele mantém o que disse. "Acho que os magistrados hão de receber o mesmo tratamento dispensado ao conjunto dos servidores públicos", afirmou.
Mello pode estar, assim, colecionando um batalhão de críticos: igrejas -especialmente a católica-, parlamentares, juízes e militares, além dos próprios colegas de toga. Mas não parece se incomodar muito com isso.
"O juiz há de ser um homem do seu próprio tempo. Deve refletir os anseios e as angústias de seu tempo e ter o direito de emitir suas opiniões", justifica-se ele.
Celso de Mello nasceu em Tatuí (SP), formou-se na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, e especializou-se nos Estados Unidos.
Foi nomeado para o Supremo aos 43 anos de idade, em 1989. O padrinho de sua indicação foi Saulo Ramos, consultor-geral da República e ministro da Justiça no governo Sarney.
Excomungado?
Mello defende o projeto do Congresso que regulamenta o aborto quando a gravidez é resultado de estupro ou há risco de vida para a gestante.
E vai além: propõe a ampliação do aborto legal para os casos de séria ameaça à saúde da mãe, malformação do feto ou quando houver dúvida sobre a origem do sêmen na inseminação artificial.
"Pai, o sr. vai ser excomungado?", perguntou-lhe a filha caçula, Sílvia Renata, 13, que estuda num colégio de freiras, o Santo Antônio.
"Não, filha, a Igreja Católica só pune quem pratica o aborto. Eu apenas defendo o cumprimento da lei", respondeu-lhe o ministro.
A outra filha, Ana Laura, 16, ficou aliviada ao discutir a questão com as colegas do Sigma, um colégio leigo.
"Elas concordam com o sr.", disse-lhe. Pesquisa Datafolha mostrou que não só elas: 79% dos católicos paulistanos aprovam o projeto de regulamentação do aborto.
As duas filhas e a mulher de Mello, Maria de Lourdes, são católicas e frequentam missa aos domingos. Um primo em segundo grau, d. José Carlos de Almeida, é bispo de Araçatuba (SP). E Mello? "Católico não praticante", responde o ministro.
Pilhas de textos
No caso do aborto, Mello empilhou seis textos nas duas mesas de seu gabinete. O primeiro deles é o Código Criminal do Império, de 1830, que pune o executor do aborto, mas não a mulher que o pratica.
Outro é o primeiro Código Penal da República, de 1890, que já admitia a interrupção da gravidez em caso de "morte inevitável" da gestante.
Como o projeto em tramitação no Congresso está apenas regulamentando o Código Penal mais recente, de 1940, diz-se que está atrasado 57 anos. Mello discorda: "O atraso é de 107 anos", diz.
Os demais documentos são as conclusões de quatro conferências da ONU (Organização das Nações Unidas), inclusive a 4ª Conferência Mundial da Mulher, em Pequim, 1995, à qual compareceu a primeira-dama brasileira, Ruth Cardoso.
"As mulheres têm direito de definir, de maneira autônoma, o que é concernente à sua fecundidade e à sua sexualidade. Têm o direito de gerar e de não gerar filhos e até de espaçar as gestações", resume o ministro.
União de homossexuais
Quanto à igreja, Mello é direto: "O Estado laico não deve nem pode se envolver em questões religiosas, assim com as religiões não devem se envolver em questões de Estado".
A afirmação vale também para condenar o ensino religioso nas escolas públicas: "Sou contra. Até para evitar que uma religião seja privilegiada e as outras acabem sendo marginalizadas".
Sobre o projeto da deputada Marta Suplicy (PT-SP) que propõe a união civil de homossexuais, Mello lembra que a Constituição prevê o casamento civil exclusivamente entre pessoas de sexos diferentes, mas ressalva: nada impede que os casais do mesmo sexo possam adquirir e dividir bens de forma legal.
"Antes de mais nada, devemos respeitar a opção sexual livremente feita pelas pessoas, extraindo dessa realidade social as consequências de natureza civil e material", disse ele, casado com Maria de Lourdes há 24 anos.
Impeachment dos juízes
"Considero um cerceamento na liberdade de decisão uma submissão burocrática do juiz às decisões de instâncias superiores", afirma o ministro.
"O juiz deve ter o direito de julgar com base na realidade social, política e jurídica do lugar onde vive e atua. Não se pode esterilizar o poder criador e renovador da jurisprudência", afirma.
Em contrapartida, Celso de Mello defende a extensão do impeachment -hoje restrito aos ministros do Supremo- a todos os juízes, sejam de tribunais superiores, federais ou regionais, sejam de primeira instância.
"Nenhuma autoridade pública está imune ao controle social", diz, enumerando as hipóteses em que se aplicaria processo de impeachment: negligência, ausência, suspeição no julgamento, falta de decoro público. Quanto aos crimes comuns, que sejam encaminhados ao Ministério Público.
Ele também lembra que a intervenção federal nos Estados é prevista pela Constituição quando os responsáveis pela ordem pública são justamente os fatores de ruptura dessa ordem. Caso de PMs em greve.
Justiça Militar
Também defende a extinção da Justiça Militar nos Estados, o que pode favorecer um policial militar e prejudicar um cidadão civil que bata com seu carro num veículo militar, por exemplo, e fique sujeito a um julgamento em foro militar.
"Não tem sentido que, em tempos de paz e de democracia, os civis estejam sujeitos à Justiça Militar federal", diz.
Há quem ache que Mello "fala demais", nos dois sentidos: fala muito e sobre temas que não lhe dizem respeito. Há, ainda, quem diga que isso se deve a uma "necessidade de aparecer".
Ninguém, entretanto, pode lhe negar a ousadia de assumir os riscos de tornar públicas opiniões polêmicas.
No caso da sua crítica à aposentadoria especial, que acabou adiando a votação da reforma da Previdência no Senado, alguns ministros acharam que ele exorbitou, mesmo falando em seu nome, não no do Supremo.
"Reduzir a aposentadoria é contribuir para enfraquecer a instituição", disse um deles. Mello, entretanto, insiste em ir contra o corporativismo.

Texto Anterior: O recado dos leitores
Próximo Texto: Coletânea traz um Celso Furtado atual
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.